UM LIVRO NUNCA TERMINA AO VIRAR DA ÚLTIMA PÁGINA

Por Leandro Bertoldo Silva

Sempre tive fascinação pelas coisas simples. Acho mesmo que sou um fazedor de miudezas. Não por acaso tenho por Manoel de Barros uma admiração profunda, na capacidade que ele tinha — ou tem, porque um poeta nunca morre — de construir pequenezas insignificantes. Insignificantes? Ha, ha, ha!…

Muitas vezes como escritor, busco o pequeno das coisas. Bartolomeu Campos de Queirós, outro que entendia a linguagem miúda da vida, chegou a escrever um livro cujas 45 páginas valiam por 450; uma página de leitura por um mês de reflexão, a iniciar pelo título: “Antes do Depois”. Hã?! Pois é… E ainda há quem avalia se um livro é bom se ele for grosso! Não recrimino. Esses, às vezes, são bons escoradores de porta.

De qualquer forma, gosto das histórias que nos fazem pensar, daquelas a nos puxarem o tapete. O resultado já sabemos: um belo tombo existencial.

Escrever bem não é escrever muito, assim como ler muito não equivale ao ler certo, e eu não estou a falar de ortografia e muito menos de pontuação. Aliás, a gramática é uma necessidade(?), não uma camisa de força. Haja vista Guimarães Rosa.

Como vê, tantos sãos os escritores e escritoras a nos ensinarem isso. Uma vez estava a ler repetidas vezes um mesmo livro: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Sim, sou uma espécie de (re)leitor. Quem me conhece sabe: prefiro reler um livro a lê-lo pela primeira vez. Estava nisso quando fui interpelado por um amigo:

— Por que lê tão repetidas vezes este livro?

— Porque nele estou quase a encontrar a minha liberdade.

— O que falta para isso?

— A próxima leitura.

— Não te angustia saber que pode novamente não encontrar?

— Me angustia mais achar que já encontrei…

Não houve mais perguntas.

Recomecei.

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Então, aqui está mais um texto em que eu revelo uma pequena particularidade, como ler repetidas vezes um mesmo livro. Há pessoas que acham isso uma perda de tempo, afinal há tantos livros a serem lidos… Mas uma coisa é ler, outra coisa é… ler! Com você como é? Você costuma repetir leituras?

Forte abraço!

Até a próxima.

RECORDAÇÕES – HISTÓRIAS QUE MINHA AVÓ CONTAVA

Por Rosi Amaral

Rosi Amaral é de Belo Horizonte. Trabalha como professora na rede pública. É contadora de histórias e escritora.

Maria, nome pequeno de uma pessoa com grandeza de alma, de coração e de histórias. Vó Maria sempre tinha uma história pra contar. Mas a que eu mais gostava de ouvir era uma da cidadezinha onde ela nasceu: Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Ela contava que, ainda menina, conheceu Antonieta, a moça mais bonita da cidade. Antonieta estava de casamento marcado com João, um fazendeiro muito rico. Aconteceu que, na véspera do casamento, a moça fugiu, deixando para trás o noivo, vários rapazes que alimentavam uma escassa esperança de conquistar seu coração e um bilhete dizendo que iria para a cidade grande em busca do seu sonho: ser uma cantora famosa.

Vó Maria lembrava também de Salete, a irmã mais velha de Antonieta. Era a moça mais séria da cidade. Vivia para o trabalho e para a igreja. Criticava a postura dos jovens da cidade que se entregavam aos prazeres carnais, esquecendo de preservar a moral e os bons costumes. Não gostava de falar da fuga da irmã. As mexeriqueiras da cidade diziam que ela era apaixonada pelo noivo abandonado. Mas esse, depois da partida da amada, resolveu ser padre.

A pobre moça, com o coração partido, passou a dedicar-se ainda mais à igreja e às obras de caridade. Estava sempre disponível a qualquer hora do dia ou da noite para ajudar os necessitados. Só não saía de casa em noites de lua cheia. Ela tinha medo de encontrar Maria Doida, uma jovem andarilha que, desde menina, demonstrou ser perturbada das ideias. Vivia com a cabeça na lua, literalmente. Cantava, fazia versos e até uivava para seu objeto de fascinação.

Aconteceu um dia que Salete teve que sair às pressas para ajudar umas carpideiras no velório do médico da cidade. O doutor que cuidava de todos, esqueceu de cuidar da sua própria saúde. A cidade ficou desolada. Ninguém imaginava que o doutor sofria do coração.

Salete, pega de surpresa com a notícia, esqueceu de olhar a lua e saiu de casa.

Estava passando na porta da igreja quando ouviu um uivo assustador. A pobre moça congelou no lugar que estava. Não conseguiu dar um passo. Sem ação, viu Maria Doida se aproximando, aproximando, até que, quando estava bem perto de Salete, olhou em seus olhos, pegou em suas mãos, sorriu e soltou um uivo bem suave, parecia quase uma canção. Nessa hora, Salete sorriu também, algo que não fazia há muito tempo. Depois saiu de mãos dadas com Maria Doida, uivando pela cidade. A partir desse dia, Salete passou a viver na rua junto com Maria Doida. As duas sempre eram vistas fazendo versos e uivando para a lua.

Minha avó terminava a história assim. E eu sempre perguntava: Mas, e a Antonieta?… E minha avó dizia: Durante muito tempo, nas noites de quermesse, quando o rádio da cidade tocava as músicas das paradas de sucesso, todos ficavam atentos na esperança de ouvir a voz de Antonieta…

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Gostou do texto? Talvez não tenha percebido, mas ele é cheia de “ingredientes textuais” e nasceu de um exercício de criação de escrita afetiva aqui na Árvore das Letras, no curso Vivenciando a Linguagem, Leitura e Escrita, em que Rosi usa das suas memórias para costurar histórias

É assim que acontece: ingredientes estão por todos os lados, basta juntá-los e dar a eles o seu toque literário. Parabéns, Rosi. Seja, também, muito bem-vinda!

Ah! Rosi Amaral é a menininha da foto…

Curta, comente. É uma ação simples que ajuda as histórias chegarem a mais pessoas.

Forte abraço!

Até a próxima.

CONTRA RESIGNAÇÃO A ACÇÃO

Por Tomé Nasapulo

Emílio Tomé Cinco Reis, de pseudónimo Tomé
Nasapulo, de nacionalidade angolana, natural da província do Huambo, professor
do ensino secundário do 2° ciclo do liceu 4019 “24 de junho-Cacuaco”
lecciona a disciplina de Física e é graduado em geologia na opção recursos
energéticos, pela Universidade Agostinho Neto, Faculdade de Ciências Naturais.

Oprimidos
Somos!…

Desesperadas vozes
Ecoamos na escuridão
D’Alvorada almejada
Vislumbra-se o horizonte

Oprimidos
De aflição, cansados
Trémulos e ofegantes

Vai o tempo meio sem conta e a nebulosidade
Aflora esperança sucumbida ante murmúrios
Ao sucumbir da mulher da criança que chora
Da vontade de vencer
Quebrada a opressão

Resignação nunca!

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Aqui está mais uma poesia angolana fruto do encontro dos nossos continentes. Tomé Nasapulo aqui chega onde já se encontra o professor Dr. Antônio Alexandre. É assim que ele o apresenta:

Conheci o professor Emílio Cinco Reis , no liceu 4019, no ano letivo 2021/ 22. Na altura ele declamou um dos seus textos poéticos. Daí fui acompanhando o talento dele.  E para não ficar perdido no mundo da física que é cadeira que ele leciona no liceu falei com a Gabriela Lopes no sentido de o ajudar na publicação dos textos. Sabemos todos que a Gabriela Lopes é aquela janela aberta que mesmo em altas horas não se fecha. Foi assim que para além da janela aberta encontrei um portão aberto que é Leandro Bertoldo Silva.

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Ah, quem é Gabriela Lopes? Vocês também a conhecerão…

Seja bem-vindo, Tomé Nasapulo.

Forte abraço!

Até a próxima.

ENTRE O ANELO E O SUSPIRO

Por Leandro Bertoldo Silva

Aflição de ser água em meio à terra

e ter a face conturbada e imóvel.

Hilda Hilst

Tenho um gosto especial pelos diários, principalmente aqueles escritos com a mais fina pena da literatura. Como não lembrar Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de despejo, o diário de uma favelada”? O que falar de “Memorial de Aires”, um dos meus livros preferidos de Machado de Assis? Ou mesmo “Drácula”, de Bram Stoker, todo escrito em forma de diários pelos personagens da trama em idas e vindas, questionamentos e respostas ao tecerem um impressionante relato intercalando-se uns aos outros?

Todos esses diários são eternizados nas memórias de quem os leram, alguns ficcionais, outros reais e outros ainda mistos. Vá entender a cabeça de um escritor! Mas há um no pedestal dos apaixonados por essas linhas inicialmente pessoais e despretensiosas a chamar-me curiosa atenção: o diário de Anne Frank. Isso mesmo! É o nome do que se tornou um dos livros mais emocionantes do mundo inteiro. A história da pequena Anne, assassinada pelos nazistas depois de passar anos escondida com sua família e outras pessoas no sótão de uma casa em Amsterdã, onde funcionava a fábrica de seu pai.

Mas não irei falar aqui sobre essa triste história, que não deve ser esquecida; daí também a importância dos diários. Antes falarei de uma peculiaridade simples, mas genial: Anne não escrevia ao léu, mas para Kitty, uma amiga imaginária. O que isso tem de extraordinário? Tudo! Ao direcionar a escrita a alguém, ela se torna, além de íntima, confidencial. Ainda mais se esse “alguém” for bem construído, com uma vida pregressa, profissão, família, amizades, escolhas… Isso o torna uma pessoa em potencial de não apenas escutar a sua fala, mas dialogar com as suas alegrias e dores. Como? Nas suas próprias digressões. É possível supor qual seria a resposta, mesmo que não concorde com ela.

Por isso, não me custa nem um pouco confessar: furtei a ideia de Anne. Mas não me julgueis mal. Jorge — sim, o “meu Ktty” se chama Jorge — é alguém que conviveu e convive comigo há muitos anos. Bem antes de adentrar-me no universo dos diários já detinha com ele longas conversas. Almoçava com ele, ria com ele, chorava e até brigava. Chegamos a ficar alguns anos sem nos falarmos, embora ele sempre me aparecia em sonhos, mesmo em silêncio, a abrir-me as janelas da minha alma. Engana-se quem pensa que era eu uma criança. Estou a referir de quando já era bem crescidinho. E como foi ele a escolher-me e não eu a ele dei-lhe um presente: um romance — Janelas da Alma — no qual Jorge, com toda a sua destreza, fundiu-me ao seu modo de pensar e de sentir. Tornou-se o personagem principal.

Caso se interesse em ler ficaremos felizes. Por hora, gostaria de apresentar-lhe o nosso primeiro encontro que passou a ser, também, após o livro ser publicado, o início do nosso diário. O chamo de “Entre o anelo e o Suspiro”.

Há momentos de mais puro esquecimento, esses momentos entre os quais nossa alma se liberta em princípio de estado. Como é doce o não ter que ser… Era o pensamento de Jorge ao me olhar pela primeira vez. Queria não ter que ser sempre, entregar-se a ele mesmo como as flores se entregam ao orvalho da manhã sem trocas e sem medos.

Sempre teve [ou tive?] a visão desse encontro: ora era a flor, ora o orvalho, como ora era o escritor, ora o personagem, sem preferências ou escolhas a vir destruir os versos existentes “entre o anelo e o suspiro”, como dizia aquela poesia guardada em um naco de memória.

Já era noite e toda noite era assim: preparávamo-nos, eu e Jorge, para esquecer, nunca lembrar. No esquecimento, não há sonhos – essa arrogância do pensamento. Isso já era eu a achar, em comunhão com meu personagem, a essa altura sem saber quem era ele e quem era eu.

Não importa. Calávamos um para o outro no momento exato do esquecimento, fragrância milimétrica de tempo entre o estar acordado e o começar a dormir. Pronto. Já foi. O barulho recomeça e o sonho invade os nossos pensamentos.

Boa noite, Jorge.

Amanhã

volto

a

escrever-te.

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Bem, amigos e amigas que me leem aqui neste sítio (sim, adotei este nome), foi assim o meu reinício com Jorge. Digo reinício porque passei 15 anos a escrever o tal romance que lhe dei de presente. E agora nos falamos todos os dias, eu daqui e ele de lá. desse universo extraordinário da literatura. E você? Também escreve ou já escreveu diários? Diga aí nos comentários sobre sua experiência com eles. Vou gostar muito de saber.

Curta, comente, compartilhe e, como sempre, obrigado por estar aqui.

Forte abraço!

Até a próxima.

O VENTO DA LIBERDADE

Por Antônio Alexandre

Doutor em educação, presidente do instituto superior politécnico Nelson Mandela.
Professor de língua portuguesa, literatura, inglês e sintaxe do português. Investigador, membro correspondente da ALTO, colunista do jornal Roll. Autor de vários artigos científicos, professor convidado da Fics, professor convidado da UNEC.

“Deixe-me lhe contar o seguinte:

Angola é um país que se livrou do julgo colonialismo em 1975, tornando-se independente. Depois mergulhou em guerrilha durante longos anos. O calar das armas teve lugar em Abril de 2002. Como pode ver é um país virgem, cujo povo luta pela escolarização, justiça e liberdade.
Na literatura busco despertar a consciência”.

(Antônio Alexandre)

O vento da liberdade

 Cheira, todos os dias, à chuva.

Chuva de justiça, chuva de paz e de amor.

Senti o cheiro quando à praça caminhava.

Vejo todos correndo à praça é o fim do opressor.

Chegou à praça o cheiro da liberdade

E no rosto do povo a felicidade.

Vejo o campo a crescer e a renascer a esperança.

Vejo o fim da escuridão dando lugar à justiça.

                               

Cá na praça o povo alegre agita-se pela independência.

E todos na busca da irmandade, na tolerância e na paciência.

Caminham juntos e abraçados pela mesma distancia.

Sinto o vento e o cheiro da mudança.

Uma mudança que veio para ficar.

Como a dança do carnaval e como a onda do mar.

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Permitam-me um compartilhamento. Nessas duas semanas que se passaram vivenciei um belo encontro (mais um) que me proporcionou um abraço cultural com nossos irmãos de África. Antônio Alexandre, confrade na Academia de Letras de Teófilo Otoni, manteve comigo breves, mas auspiciosas conversas por e-mails; eu aqui, no Vale do Jequitinhonha e ele lá, em Angola. Dentre abraços verbais e saudações literárias, eis que fizemos nascer uma parceria além-fronteiras aqui mesmo nesse sítio, como ele chama, e é sem dúvidas a melhor maneira de denominar algo a partir da nossa própria língua. Estaremos, a partir de “O vento da liberdade”, a trocar histórias: contos, crônicas, poesias, tanto minhas quanto as dele e também de nossos alunos e alunas, a serem publicadas aqui neste espaço. Espero que gostem, assim como nós, dessa novidade e continuem a compartilhar, comentar e fazer ir longe nossas letras irmãs.

Seja bem-vindo, Antônio Alexandre.

Forte abraço!

Até a próxima.

PONTOS DE VISTA

Por Leandro Bertoldo Silva

“Havia me arrumado toda. Um dia inteiro no salão de beleza”.

Pensava, pensava, pensava… Seu cabelo mais parecia uma escultura de Rodin. Unhas desenhadas, moderníssimas. A pele uma seda, e gastou uma fortuna naquele vestido dos sonhos. Ficou tão bonita que mal podia se reconhecer no espelho.

“Por que será que ele sequer me olhou?”.

Perguntava-se desiludida e triste, segurando a vassoura na pausa da casa que pedia arrumação.

O cabelo da véspera, agora volumoso e desgrenhado, estava preso no alto da cabeça por dois lápis atravessados. A maquiagem desfeita revelava as sardas abaixo dos olhos. Os óculos, de aros grossos e teimosos, escorregavam para a ponta do nariz. Os chinelos de dedo nada pareciam com os sapatos de salto de outrora.

Foi assim, com uma camiseta simples e um short desfiado, que se dirigiu à porta para atender a campainha que tocava.

Era ele! O amigo do seu irmão… O responsável por toda aquela transformação de Cinderela.

Ontem sequer a notou; hoje estava ali, bem a sua frente, vendo-a naquele estado!

Os olhos pousados nela, vidrados, pareciam não acreditar. Sua vergonha aumentava a cada silêncio do rapaz que não arredava pé, até que sua boca, num movimento de quem iria finalmente desferir a gozação, disse:

— Luiza! Você está… linda!

E o amor se indecifrou em pontos de vista…

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Então, eu, particularmente, sempre prezei pela simplicidade, o que só o dia a dia pode revelar, porque ali se encontra a realidade, assim mesmo, sem máscaras ou filtros… Você enxerga beleza no natural?

Curta, comente, compartilhe e, como sempre, boa reflexão e obrigado por sua leitura.

Forte abraço!

Até a próxima.

ALÉM DA IMAGINAÇÃO

Por Leandro Bertoldo Silva

Sempre apreciei os circos mambembes, esses viajantes de uma cidade à outra com as suas lonas rasgadas, os carros adaptados com alto-falantes a percorrer as ruas e a chamar o povo para o espetáculo.

Aprecio o fato de comprar o ingresso naqueles papeizinhos cortados à tesoura e, ao entrar e se acomodar nas arquibancadas de tábuas com o cuidado de se equilibrar para não cair entre os vãos, perceber, surpreso, a contorcionista ao ser a mesma moça que acabara de vender o saquinho de pipoca na entrada.

Gosto de ver os trailers parados nas mediações da lona com roupas estendidas em varais improvisados nas janelas e, entre um e outro, a mãe bailarina a amamentar o filho recém-nascido antes de entrar no picadeiro.

Enquanto muitos veem as atrações eu também as vejo, mas preencho-me muito mais na poesia por de trás das cortinas, naquele pai que irá tirar a maquiagem, desvestir o fraque de apresentador e ir ao banco pagar as contas no dia seguinte; nos ajudantes de palco sendo eles os trapezistas e também os operários de manutenção dos equipamentos; no filho que irá lavar todas as roupas dos artistas, inclusive a sua de palhaço.

Ah, os palhaços… Meus preferidos! Como tiram risadas de dentro das almas mais amarguradas… Um dia eu conheci o Alegria — o palhaço da luz. Após a sessão, enquanto o público saía, o vi com a mesma vassoura usada na aparição de há pouco a iniciar a varredura do chão. Fui até ele e o parabenizei. Ele agradeceu com um sorriso um pouco diferente do meu. Não era assim um sorriso alegre e largo como na cena de outrora. Era, eu diria, até um tanto triste. Uma criança chegou perto com o pai e Alegria a pegou no colo, brincou com ela e a deixou feliz dando-lhe, inclusive, conselhos. Ao despedir da criança e do pai olhou para mim, fez um aceno com a cabeça, espirrou água da flor de sua lapela que mais pareceu um choro silencioso, e continuou a vassourar.

Fui embora, mas o meu pensamento ficou naquele palhaço, o mesmo visto no dia seguinte no sinal fechado no centro da cidade ao fazer malabarismo e chamar as pessoas para o circo. Enquanto ele fazia o seu trabalho, eu fiquei ali a imaginar…

Tinham-lhe tantas vezes pedido conselhos… Era o redentor de todos os sofrimentos que assolavam as almas em conflito, a ponto de impedir suicídios. Alegria – o palhaço da luz –, como era conhecido, escolheu as ruas como o seu picadeiro e nelas transformava pessoas. Agonia mudava-se em sonhos e medos em esperanças. Contudo, algo curioso acontecia: Alegria era triste… O homem por trás do palhaço não conseguia fazer consigo o mesmo que fazia com os outros, pois não tinha tido a sorte de encontrar alguém que o apresentasse a si…

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Bem, hoje deixo os pensamentos soltos com espaço para refletir naquilo que está além da imaginação…

Obrigado pela leitura e, como sempre, peço o seu comentário. Ele é muito importante para mim.

Forte abraço!

Até a próxima.

QUANDO AS LUZES SE APAGAM

Por Leandro Bertoldo Silva

Quando as luzes se apagam enxergamos com mais clareza…

Imagine uma cidade em um sábado à noite, onde, de repente, a metade de suas luzes se apagam momentos antes da chegada de amigos tão esperados para o jantar. Qual a sensação você teria?

*****

 Muitas vezes temos a tendência de enxergar somente o lado negativo de certos acontecimentos, e esse comportamento nos faz achar tudo relativamente sombrio. Isso, naturalmente, é um engano. A vida, com a sua sutileza peculiar, mostra-nos o contrário e como estamos é doente dos olhos e, por que não, dos sentidos, como bem disse Alberto Caeiro:

“O que vejo a cada momento

é aquilo que nunca antes eu tinha visto,

e eu sei dar por isso muito bem.”

Quando nos colocamos frente às situações tais quais elas se apresentam e olhamos de verdade para elas na tentativa de extrair o melhor, descobrimos a poesia antes não percebida. O que aparentemente é um transtorno, na verdade é um enorme presente embrulhado no papel das possibilidades.

Estava eu fazendo a barba após um banho num início de noite de sábado, quando subitamente a luz foi embora, não apenas da minha casa, como da metade da cidade, deixando todos na mais completa escuridão. Era possível ouvir os bramidos e lamentos ecoando de cada canto, de cada esquina e casas, como se as paredes, ao invés de ouvidos, tinham enormes bocas ao emitirem gritos à la Edvard Munch.

Pedi minha filha para trazer uma lanterna para acabar de fazer a barba tranquilamente já pensando como faríamos com a visita de dois amigos convidados para o jantar. Em momento algum, tanto eu como Geane, minha esposa, queríamos desmarcar o encontro, afinal não tinha sido a primeira vez que o tentávamos e tudo já estava adiantado desde o dia anterior, incluído os ingredientes de um delicioso yakissoba, além das jabuticabas colhidas do pé do quintal da minha casa para o preparo de um vinho frisante, sem nos importarmos se estávamos cometendo ali qualquer tipo de gafe ou incoerência culinária.

Mas o melhor mesmo estava por acontecer… Fomos os três — eu, minha esposa e minha filha — para a sala. Enquanto Geane tentava falar com os amigos pelos dados móveis do celular, e ao deixar nele a luz da lanterna acesa, esta fez refletir na parede as nossas sombras enormes. Para mim e minha filha foi um generoso convite à fantasia. Começamos a brincar de fazer animais com as mãos e a criar histórias onde a cobra de 3 metros engolia uma aranha frágil e indefesa. Certo, também criamos histórias de lindos passarinhos voando entre as flores… Lembrei-me de quando eu era criança e de como passava horas a fazer essas projeções usando o abajur da minha mãe, e só então me dei conta de que nunca as havia feito com minha filha! Larguei a reflexão de tamanha perda de tempo e mergulhei nas aventuras do cachorro que corria atrás do coelho, do jacaré ao mostrar língua para o sapo e do elefante ao se fartar de beber água no poço.

Geane confirmou a vinda dos nossos amigos mesmo sem luz. A partir daí, começamos a encher a casa de velas. Enquanto as velas eram acesas na cozinha e na sala, encarreguei-me de acendê-las na varanda para uma boa recepção de boas-vindas. Tudo começou a ficar num clima mágico, meio idade média, e nossa casa já não era casa, mas um livro de histórias onde cada cantinho guardava um capítulo surpreendente. O melhor deles aconteceu quando fomos para a cama de casal e eu perguntei para minha filha se ela queria de fato ouvir uma história, pois eu leria para ela com a luz da lanterna. Yasmin logo concordou. Eu fui até minha estante e peguei o primeiro livro que minhas mãos tocaram. O título? “O menino que perdeu a sombra”, do Jorge Fernando dos Santos. Quase não acreditei na delicada coincidência de um menino que tateava no escuro à procura de si mesmo. A diferença minha e de Yasmin estava em havermos nos encontrado naquela escuridão.

No fim da leitura, como todo bom livro a nos surpreender, a luz voltou, mas nada era como antes, tudo tinha mudado: as percepções, os sentimentos, as descobertas. As velas foram apagadas, os amigos chegaram, sorrisos e abraços em festejos de carinho, brindes erguidos. Mas dentro de mim continuava aquela doce escuridão a encher de luz as nossas sombras. E mais uma vez veio à memória o velho Caeiro e de como estava certo:

“O mundo não se fez para pensarmos nele

(pensar é estar doente dos olhos)

mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…”

Pura verdade…

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Gostou da história? Escrevi essa crônica para mostrar como tudo que nos acontece é motivo de celebração, mesmo que inicialmente possa parecer o contrário. Se olharmos com cuidado, sempre haverá uma apreciação pronta para virar lindas histórias para contar.

E você, já passou por algo parecido? Um momento que se descobriu grandioso? Agradeço mais uma vez a sua leitura e peço que comente, compartilhe as suas alegrias.

Forte abraço!

Até a próxima.

A OCASIÃO NEM SEMPRE FAZ O LADRÃO, MUITO ANTES PELO CONTRÁRIO!

Por Leandro Bertoldo Silva

Está certo. A gente tem a pré-disposição de acreditar nos antigos ditados populares como mananciais de sabedoria que os mais velhos detêm com certo ar de superioridade. Isso, naturalmente, não seria um engano se de tempos em tempos as ocorrências da vida não desmascarassem certas verdades e se associassem ao Sobrenatural de Almeida que de sobrenatural não tem nada e usa o famoso personagem de Nelson Rodrigues apenas como meio de explicar o inusitado. Vejamos o acontecimento de uma manhã de sábado, dia agradável, em que um miúdo, sozinho em casa, ouve discretamente um chamado no portão de sua casa, tão discreto que as palmas tiveram suas sequências duas vezes repetidas: tap, tap, tap, tap, tap… tap, tap, tap, tap, tap…

O senso comum seria perguntar quem era. Mas o miúdo, indiferente às precauções, foi logo abrindo e desferindo em sorriso um “pois não, o que desejam” de maneira tão natural e agradável que os dois homens ali à sua frente apenas arquearam as sobrancelhas entreolhando-se.

— Seu pai está em casa? – perguntou um deles enquanto o outro já escaneava com seus olhos treinados o interior da varanda.

— Não, senhor.

— E sua mãe?

— Também não. Saíram há pouco. Meus irmãos também não estão, de modo que estou apenas com o Policial em casa.

— Policial?!

— É, o meu coelho.

— Ah, sim… Que susto, quer dizer, que nome auspicioso…

— Os senhores conhecem os meus pais?

— Bem… Sim, conhecemos muito. Por isso viemos aqui para uma visitinha…

— E por que não mandaram uma mensagem dizendo que estavam a caminho? Certamente eles esperariam.

— É que pensamos em fazer uma surpresinha.

— Ah, claro. Vocês querem entrar e esperá-los? Aposto que eles irão gostar da surpresa.

— Não resta dúvida…

Com essa conversa os dois homens foram conduzidos ao interior da casa, onde o miúdo providenciou duas cadeiras convidando-os a se sentarem. Furtar-me-ei — para usar uma palavra bem a propósito — em descrever o ambiente, tanto porque isso nada acrescentaria ao relato. Basta saber que os convidados não sabiam se admiravam mais o que viam ou se a extrema hospitalidade daquela criança ao oferecer café e biscoitos para total desconserto de suas intenções.

— Caso o café esteja frio, faço outro rapidinho.

— Não, não se incomode – disse um deles.

— Não iremos demorar – disse o outro.

— Não é incômodo algum. Afinal, precisamos tratar muito bem os hóspedes.

— Hóspedes?! – Perguntaram os dois ao mesmo tempo.

— Sim, vocês não vieram visitar os meus pais? Pena que eles não estão.

— É, pena…

Um dos homens já achando aquela situação meio diferente, embora “estranha” seria a palavra mais adequada, perguntou ao miúdo depois de conversarem tempos a fio sobre todos os assuntos possíveis, incluindo comportamento humano e coisas cheias de sabedoria e sem compreender de onde vinha tudo aquilo, se ele não tinha medo de, bem… Ladrões.

— Bem, seu… seu… Ih, olha só: nem nos apresentamos! Eu me chamo Ricardo. Ric para os íntimos. Qual a graça dos senhores?

Os homens se olharam cada vez mais espantados.

— Eu me chamo Juvenal.

— E eu Dorival.

— Parece dupla sertaneja! Então, até era para eu ter muito medo de ladrões a considerar a minha avó.

— Sua avó roubava pessoas?

— Que malucos! — disse Ric achando graça — Não, não! Minha avó foi roubada dezessete vezes. Coitada, precisavam ver como ela ficava arrasada.

— Coitada mesmo! Não é para menos… Que malandros! — disse no impulso Juvenal se assustando com o próprio comentário e recebendo um olhar meio de estranhamento, meio de cumplicidade de Dorival.

— Mas o fato é que eu não tenho medo, sabem? Entendo que isso é um problema social e da má distribuição de emprego e renda desse país.

— Quantos Anos você tem, menino?

— Doze.

A essa altura, os dois homens já não observavam a casa da mesma forma de quando entraram e se mostravam impressionados com aquela conversa, a pouca idade de Ricardo e a naturalidade com que se expressava.

— Você acha isso mesmo? — Indagou Juvenal.

— Acho sim, você não? O que você acha Dorival?

— Eu, bem… Há controvérsias!

Juvenal olhou curioso para Dorival.

— Sim, Juvenal! O menino tem toda razão, mas tem muito gatuno por aí com instrução, boa pinta, roupas de marca, sapatos novos e tênis da moda, com toda condição de trabalho, fortes e saudáveis, que ao invés de recorrer à honestidade prefere roubar as pessoas. É um absurdo!

Silêncio.

Juvenal e Dorival olharam um para o outro, de cima a baixo, e repararam como estavam bem vestidos e calçados, barbeados e penteados. Observaram seus físicos avantajados. Olharam para Ricardo ao segurar a garrafa de café com uma das mãos enquanto com a outra oferecia mais biscoitos com um sorrisinho no canto da boca.

Que diabos significava aquele sorriso? O fato é que não saberemos. Juvenal e Dorival apressaram-se a sair, mesmo com a insistência de Ricardo para esperarem os seus pais e ficarem para o almoço. Foram embora. Mas não sem antes recomendarem ao miúdo para nunca mais abrir o portão para ninguém quando estivesse sozinho. Há muitos gatunos por aí.

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Bem, a Crônica de Domingo de hoje é algo acontecido comigo lá se vai algum tempo, que a literatura sempre dá um jeito de transformar em arte ou mesmo em livramento… Mais uma vez agradeço a sua leitura nesse nosso encontro por aqui. Mas antes de ir, curta, comente, quem sabe você não se lembre de algum momento que sentiu estar sendo protegido ou protegida? Diga aí!

Forte abraço!

Até a próxima.

AUTORRETRATO

Por Leandro Bertoldo Silva

Esta noite, nem sei… Tenho a janela aberta

e não quero dormir para sentir a vida.

[…]

Henriqueta Lisboa

Vivia em versos quando a criança que eu havia sido residia em mim sem medo de se mudar.

Vibrava quando Deus tocava tambores no céu anunciando a festa das águas que viria lavar a terra.

Nessas ocasiões, construía imensos navios e me colocava a deslizar com eles pelas encostas das esquinas, e tudo eram sonhos de papel que naufragavam na mesma proporção dos aniversários que fazia.

A vida tinha um sabor peculiar, adocicado por completo, bem diferente do agridoce inicial e do azedume final que não me permitia entender o porquê da desesperança amarga dos mais velhos.

Logo, percebi que os sabores nos ensinam onde a vida está ancorada…

Que saudades do tempo onde os muros dos jardins nos protegiam lá de fora e de quando a ameixeira, em matrimônio com a goiabeira, sustentava em seus galhos entrelaçados o meu peso irrisório de criança, “com leveza de zéfiro levantando cortinas”, enquanto a Henriqueta, irrequieta, germinava para mim e em mim em estado de poesia.

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Bem, a Crônica de Domingo de hoje é um suspiro assim bem rapidinho, desses que acontecem quando lembramos de algo que nos foi tão precioso. Às vezes, falar demais atrapalha as lembranças e é preciso dar a elas o aconchego das pausas… Mas peço, como sempre, o seu comentário carinhoso. E se desejar compartilhar também uma lembrança do seu “tempo de quintal”, do lado de dentro dos muros dos jardins, fique à vontade. Receberei com gratidão.

Forte abraço!

Até a próxima.