AUTORRETRATO

Por Leandro Bertoldo Silva

Esta noite, nem sei… Tenho a janela aberta

e não quero dormir para sentir a vida.

[…]

Henriqueta Lisboa

Vivia em versos quando a criança que eu havia sido residia em mim sem medo de se mudar.

Vibrava quando Deus tocava tambores no céu anunciando a festa das águas que viria lavar a terra.

Nessas ocasiões, construía imensos navios e me colocava a deslizar com eles pelas encostas das esquinas, e tudo eram sonhos de papel que naufragavam na mesma proporção dos aniversários que fazia.

A vida tinha um sabor peculiar, adocicado por completo, bem diferente do agridoce inicial e do azedume final que não me permitia entender o porquê da desesperança amarga dos mais velhos.

Logo, percebi que os sabores nos ensinam onde a vida está ancorada…

Que saudades do tempo onde os muros dos jardins nos protegiam lá de fora e de quando a ameixeira, em matrimônio com a goiabeira, sustentava em seus galhos entrelaçados o meu peso irrisório de criança, “com leveza de zéfiro levantando cortinas”, enquanto a Henriqueta, irrequieta, germinava para mim e em mim em estado de poesia.

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Bem, a Crônica de Domingo de hoje é um suspiro assim bem rapidinho, desses que acontecem quando lembramos de algo que nos foi tão precioso. Às vezes, falar demais atrapalha as lembranças e é preciso dar a elas o aconchego das pausas… Mas peço, como sempre, o seu comentário carinhoso. E se desejar compartilhar também uma lembrança do seu “tempo de quintal”, do lado de dentro dos muros dos jardins, fique à vontade. Receberei com gratidão.

Forte abraço!

Até a próxima.

QUEM SÃO OS SEUS HERÓIS?

Por Leandro Bertoldo Silva

Ponte entre tempos…
Mundos que se completam…
Quem sou eu agora?

É comum termos personagens que marcam ou marcaram nossas vidas. Quem nunca se imaginou sobrevoar os arranha-céus das cidades como o Super-Homem, ou subir pelas paredes como o Homem-Aranha e até combater o crime ao usar um laço mágico como a Mulher-Maravilha? Eu também tenho os meus personagens, mas nenhum, por mais poderes existentes, me falou tão profundamente quanto um específico, e olha só: nem poder ele possui, a não ser sua inteligência… Engana-se quem pensou em Batman! O meu herói, sim, pois acabou por se transformar em um herói para mim, não era bravo, valente, nunca salvou ninguém de perigos, a não ser a mim, salvo do não saber das coisas, do não gostar de ler, de não conhecer histórias e mitologias, filosofias e inventores. O meu personagem é, e sempre foi um sábio sabugo de milho feito pelas mãos talentosas e generosas de Tia Nastácia, colhido em um milharal no Sítio do Picapau Amarelo: Visconde de Sabugosa.

Desde criança, Visconde povoa meu coração de sonhos e viagens inesquecíveis. Quantas vezes fui à lua em um foguete, ajudei Teseu a vencer o Minotauro e quase morri de susto ao ficar a poucos centímetros da boca do Boitatá! Sim, vivia as aventuras do Sítio como se fossem minhas e, embora admirado com a coragem de Pedrinho e sua música que me fazia chorar, como faz até hoje — ela, inclusive, foi o toque do meu celular por muito tempo —, diferente da maioria dos meninos da minha idade, era o Visconde que eu queria ser. Na minha imaginação, passava horas na biblioteca e os meus poucos livros reais se transformavam nas enciclopédias e compêndios lidos e estudados pelo sábio sabugo. Os pregadores de roupa da minha mãe se transformavam em máquinas e equipamentos moderníssimos capazes de nos transportar pelo tempo. Tampinhas de garrafa, alfinetes, papéis laminados de bombom, potes de vidro, tudo eu levava para o meu quarto, ou melhor, para o meu laboratório, e ficava lá inventando coisas. Afinal, eu era o Visconde!

Esse personagem vai além de um gosto de criança, de uma simpatia infantil que depois que a gente cresce desaparece. Visconde permanece em mim como uma entidade real, lúcida. Em todos os momentos da minha vida ele esteve presente, e sempre da melhor forma, silencioso, introspectivo, cúmplice… Poucas pessoas sabem disso (até agora). Até na minha história do pé de ameixa contada aos quatro cantos, Visconde estava lá. Era nele que eu me transformava ao subir na árvore e fazer de seus galhos as estantes dos meus livros. Hoje tenho uma filha já moça, e é uma das poucas a saber da minha “identidade secreta”… Ela faz os meus sonhos permanecerem acordados. Sou muito grato, pois, apesar dos tempos modernos, ela permitiu que eu a apresentasse ao meu mundo, às minhas aventuras e, além de conhecê-las, entrou nelas, compactuou com meus personagens, estendeu-lhes a mão e acolheu-os em seu coração. Não tenho dúvidas! Yasmin é uma daquelas princesas contadas pela Dona Benta e fazia com que eu, Visconde, pesquisasse a respeito nos livros de história. Mas me faltava uma coisa: faltava, além de ser o Visconde por dentro, ser também o Visconde por fora, deixá-lo se mostrar em mim assim como eu sempre me mostrei nele. E mais uma vez, foi ela, minha filha, a responsável por isso. Em seu aniversário de 11 anos onde todos podiam se fantasiar de alguma coisa, resolvi fazer o contrário; quando todos colocaram suas máscaras, resolvi tirar a minha…

O difícil foi, depois da festa, voltar à fantasia da vida. Mas qualquer dia eu volto à realidade. Obrigado, Visconde, por termos sido um só. Vamos às nossas aventuras. Elas ainda não acabaram.

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E então, gostou dessa história? Sempre que volto a ela consigo ter a sensação gostosa de ser quem sou… Agradeço por sua leitura e fico já na curiosidade de saber quem são os seus heróis… Por acaso, a história te remeteu a eles? Diga pra mim e aproveite para curtir, comentar e compartilhar com seus amigos. Você já sabe: isso é um bálsamo para um escritor.

Até a próxima.

REENCONTRO EXISTENCIAL

Por Elisa Augusta de Andrade Farina
Presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni
e integrante da turma Lygia Fagundes Telles
do curso Vivenciando a Linguagem, Leitura
e Escrita, da Árvore das Letras.

Não possuo uma vida ideal, pois para mim que a conceituo como a possibilidade em que se consegue uma paz interior, vivendo a maior parte do tempo com serenidade, entra em distonia com minha realidade existencial.

Para se conquistar uma vida tranquila e equilibrada é essencial que você saiba como alcançar seus objetivos. O real nunca aparece. E quando aparece, está maquiado, colorido artificialmente por filtros ideais. O grande mal é quando se exercita o ideal, nega-se a vida. Temos que fazer escolhas, mesmo que essas não tenham um resultado satisfatório. O que não pode é deixar que os sonhos sejam petrificados por convicções que não sejam nossas.

Quando idealizamos, habitamos a dimensão do futuro e não enxergamos o mundo real que nos circunda. Acabamos dessa maneira por ficar sem nada porque não há outra realidade além do que é vivida aqui e agora.

Na minha visão não existe vida ideal. É quimera. O que me impulsiona a buscá-la é a liberdade de ser eu mesma e fazer uma desconstrução de tudo que representa minha vida que não me satisfaz como deveria. É ter a coragem de ignorar tudo que é imputável e ter a consciência de que minha felicidade dependerá da extensão da minha frustração ou êxito da minha busca vital.

Desta forma para não me perder, eu brinco de ser feliz e vou de tempos em tempos me reinventando, sorrindo para exterminar a tristeza que teima em reinar e me tornar uma outra pessoa que não me representa.

Quero deixar o fluxo da vida fluir. Não posso resistir. Quero ser eu mesma com a intensidade que a vida se apresenta a cada  amanhecer. Já fui água, seiva, vegetal. Sou agora gota trêmula, raiz exposta!

Quero ser água fluída e cristalina sem limites, com a certeza a me guiar ao caudaloso curso do rio da vida.

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E então, o que achou desse pequeno e profundo texto? Em momentos de perplexidades, em que as dicotomias da vida se afloram de formas tão violentas inexplicavelmente, o que é ter uma vida ideal? Aliás, para você existe uma vida ideal? Muito obrigado por sua leitura e te desejo boas reflexões.

Forte abraço!

O VELHO QUE CONSERTAVA COISAS

Por Leandro Bertoldo Silva – do livro Entrelinhas contos mínimos.

Enquanto não atravessarmos

a dor de nossa própria solidão,

continuaremos a nos buscar

em outras metades.

– Fernando Pessoa –

Gosto muito dos velhos que consertam coisas. Eu mesmo tive um tio assim. Consertava tudo.

Uma vez pegou uma lâmpada incandescente queimada no lixo, emendou seu filamento e o pequeno bulbo de luz nunca mais deixou de acender.

Osmânio era um velho como ele: consertava ferros, rádios, relógios de corda, chuveiros, televisões velhas… Mas o que ele sabia mais consertar eram sentimentos…

Não havia um só casal que, se estivesse a ponto de separação, Osmânio não os unia. O que falar das brigas entre irmãos, pais, mães? Até os animais pareciam respeitar o dom reparador que vinha das mãos daquele velho, e a braveza instintiva se transformava em mansidão quando estavam em sua presença.

Os alaridos viravam sons de passarinhos, assim como as flores floresciam mais e os aromas ficavam ainda mais cheirosos. Osmânio era assim: consertava corações…

Mas, apesar de tanto talento naquelas mãos, a tristeza não se apartava de seus olhos. Camuflava-se nos sorrisos tímidos daquele jeito misturado de sentimentos. E isso por uma simples razão: Osmânio era homem e, como tal, havia amado, e muito, uma mulher que agora existia apenas em seu passado. Ninguém nunca soube quem era de fato ou o que acontecera para ela não ter envelhecido com ele.

O que todos sabiam, porém, era que Osmânio, o velho que consertava corações, nunca havia consertado o seu…

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Olá você que está aqui! Muito obrigado por sua leitura. Essa é uma história muito curta, mas vasta de reflexão, não é mesmo? Por isso, além de pedir, como sempre, a gentileza do seu compartilhamento e comentário, deixo uma pergunta: o que você precisa consertar em seu coração?

Não se apresse em responder…

Forte abraço e ótimas reflexões.

ESSE ANO EU QUERO O SIMPLES SEM EXCESSOS

Por Leandro Bertoldo Silva

Todo final de ano somos acometidos pelo desejo do novo. É um desejo que nos leva a fazer listas de ações —na maior parte das vezes não cumpridas — e uma infinidade de rituais na esperança de dias melhores.

Há, também, certa quantidade de gurus com suas previsões, leituras astrais, queimas de karmas e até mesmo recomendações de se usar determinadas cores de roupa, comer ou evitar essa ou aquela iguaria e outras coisas mais na intenção da boa sorte. Não sou contra nada disso. Desde que se sinta bem, vá em frente. O importante é ser feliz. Mas deixe-me dizer uma coisa…

Esse ano eu quero o simples sem excessos, só isso. Em muitas coisas, quase todas, eu desejo o menos: menos barulho, menos discurso, menos necessidade de mostrar para que os olhos possam enxergar. Quero aprender com o menino do Manoel, que falava que “os vazios são maiores e até infinitos” e me formar em desenchimentos.

Sou do tipo de pessoa apaixonada pelo pequeno, pelo pouco, pelas miudezas das coisas, e isso não quer dizer pobreza material e muito menos de espírito ou falta de crença em conquistas, muito antes pelo contrário. Coragem e uma boa dose de sensibilidade se fazem necessárias para enxergar o quanto é belo o nascer do sol, o cair de uma folha, o canto de um pássaro, o reconhecimento afetivo de um animal. Junte-se a isso o sorriso de uma criança e o afago de um idoso e o mundo desabrocha tal qual pétala de rosas.  Ainda bem não ser possível colocar tudo isso em um quadro, porque nenhuma dessas coisas nasceram para serem emolduradas. É necessário saber apreciá-las em sua liberdade. E é por isso que são preciosas e raras porque poucos sabem o gigantismo de cada uma delas.

Que possamos esvaziar-nos de ilusões, ser água para correr livremente e enxergar o aconchego do silêncio; ele até pode ser quieto, mas nos diz o certo.

Que encontremos, pois, em nossos corações, o silêncio das necessárias verdades, e que o simples nos leve às nossas letras.

Queridos amigos e amigas, desejo a todos vocês um ano de magnífica beleza. Sejamos poetas das cores, dos sabores, dos amores, dos encontros sem preconceitos. Que saibamos extrair a preciosidade da vida em seus menores detalhes. São neles que moram as essências.

Feliz 2023 e até os próximos dias em que estaremos juntos na continuidade da nossa caminhada e de nossas virtudes.

Forte abraço!