Meditei sobre as borboletas.
[…] Vi que elas podem pousar
nas flores e nas pedras, sem
magoar as próprias asas.
– Manoel de Barros –
Silvinha não falava, sequer expressava sentimentos. Nunca era possível saber se algo a agradava ou desagradava. Olhos fixos na parede, quando acordada, mais pareciam fixar a própria alma em estado de espera permanente. Porém, muito balançava para frente e para trás, para frente e para trás… E só. Queria tanto penetrar naquele ser a fim de conhecê-lo, saber seus gostos, trocar segredos… Por alguma razão, gostava quando mamãe me pedia para ir brincar com Silvinha – era filha de sua amiga –, coisa que nenhuma criança da turma admitia; afinal como brincar com uma estátua balançante? Os garotos da rua não entendiam nem a ela, nem a mim, que a tinha como uma espécie de reencantamento do mundo. Com ela, experimentava sensações a partir de inúmeras tentativas de arrancar-lhe um sorriso, um gesto, qualquer coisa.
O tempo passava, e eu ficava entregue ao seu lado lhe servindo de companheiro no silêncio da parede onde, por alguma razão, fazia-me cúmplice daquela amizade, uma vez que fazíamos alguma coisa juntos… Um dia, algo aconteceu: uma borboleta entrou voando pela janela e, imediatamente, atraiu a atenção de Silvinha. Ela a acompanhou em seu voo bruxuleante, e uma luz parece ter tomado conta da menina, pois sua expressão era de alegria enquanto abria e fechava as mãos, seguindo no ar o curso da inesperada visita, que, antes de sair por onde havia entrado, teve o cuidado de beijar-lhe as faces com suas delicadas asas.
O gesto do animal não lhe causou repulsa nem medo, mas as lágrimas brotaram-lhe como orvalhos quando a viu indo embora. Foi quando, pela primeira vez, olhou para mim e eu entendi o pedido de seus olhos. Corri à janela, mas já não era possível alcançá-la. De costas para Silvinha, não tinha coragem de decepcioná-la ao perceber que eu não conseguira. Num impulso, corri ao armário e peguei um papel amarelo, desses de recado, e, dobrando-o, surgiu de minhas mãos uma pequena borboleta. Fiz de conta que voava dando inúmeros saltos pelo quarto até pousá-la no colo de minha amiga. Ela olhou séria para aquela borboleta de papel e, indiferente, voltou a fitar o infinito da parede. As lágrimas agora mudaram de olhos, e elas saíram tão rápidas quanto eu daquele quarto. Mas… No dia seguinte, quando voltei, quase não pude acreditar ao ver o mesmo quarto repleto de borboletas de papel espalhadas em cores por todos os lados. A minha surpresa ainda foi maior ao vê-la dobrando os papéis em desenvoltura e graça. Olhou para mim com um sorriso e com uma voz doce, como deve ser a voz das borboletas, disse:
— obrigada! — E arrematou: — Vem!
A partir daquele dia tudo mudou. Agora tínhamos um compromisso juntos, um enlace, o mais lindo de todos: ficar nós dois ali, horas ganhadas, naquele ofício de fazer nascerem as borboletas.
Esse conto é parte do livro Entrelinhas Contos mínimos.
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