GALILÉIA

Por Tomé Nasapulo.
Angola.
Memórias de infância do poeta vividas numa localidade humilde do município de Huambo, província de Huambo.

Galiléia!

Terra do canto, da dança, da esperança.

Carrego as lembranças,

da batata doce as nespereiras,

das noites a candeeiros,

da contemplação das estrelas sem luar.

.

Galiléia!

Memória da infância sofrida,

feridas de chute da bola de saco,

nudez da criança coberta de calções remendados,

que vai a escola sem merenda,

portando a lata para se assentar.

.

Galiléia!

Saudades das manhãs nubladas,

aquecida do capim seco do cacimbo,

das estórias contadas na cozinha de lenha,

com panelas de barro,

das farras de tchinganje

vestidos a farrapos,

crianças correndo para vê-los dançar.

.

Galiléia!

Viajei, mas não te abandonei.

Transportei os sonhos na mala,

vim parar em terras alheia,

fiel aos teus ideais,

pelejo todos os dias para torná-los reais.

.

Galiléia!

Voltarei um dia e contigo chorarei.

NOTA DE QUASE PESAR E UMA CARTA A JORGE AMADO

Por Leandro Bertoldo Silva

A NOTA

É com quase pesar que noticio uma tentativa de assassinato. Calma, deixe-me explicar. Refiro-me ao assassinato (mais uma vez) da nossa língua, da nossa cultura, da nossa história. Digo “quase” porque não chegou às vias de fato, mas nos abriu uma chaga desoladora.

O CASO

Ganhei de uma amiga uma coleção de Jorge Amado em capa dura com detalhes dourados das casas e ruas de Salvador/BA. Uma coleção de 1980. Pasme! Estava dentro de uma sacola jogada no lixo! Essa amiga carinhosamente os entregou a mim. Eu os peguei, limpei um a um e os acolhi em minha casa. Esse é o triste retrato de parte da nossa sociedade, a mesma que joga livros fora enquanto muitos se ocupam em demasia a produzirem dancinhas em redes sociais e são tidos como influenciadores, quando não chamados de heróis.

Livros encontrados no lixo.
Detalhes dourados das casas e ruas de Salvados/BA
“Que tempos! Que tempos!”

A CARTA

Querido Jorge Amado,

Quero lhe pedir desculpas. Posso imaginar a sua tristeza ao ver os seus livros dentro de um saco plástico jogados no lixo. Talvez você até saiba quem praticou essa tentativa de assassinato, eu nunca vou saber. Não, não é exagero meu e você bem sabe disso. Dentro daquele saco estava Gabriela e todos os capitães da areia, o Pedro Bala, o Sem Pernas, o Pirulito, o Boa Vida… Coitado do Boa Vida! Conheceu mais essa nesse nosso “País do Carnaval”. Lá também estava o Quincas Berro Dágua a morrer mais uma vez nessas “Terras do sem fim” quase sem ver “A luz no túnel” sem a ajuda do “Cavaleiro da esperança” porque todos eles estavam lá também sem esperança alguma. Enfim, Jorge Amado, estavam dentro daquele saco de lixo uma infinidade de personagens gestados ao suor de sua pena. Toda essa gente nasceu e fez nascer uma enorme quantidade de pessoas, artistas, atores, diretores de teatro, telenovelas, maquiadores, cenógrafos, figurinistas, até mesmo o baleiro da esquina e das casas de espetáculo e cinema cuidou da sua família por causa da sua obra, ou melhor, das suas obras. Muitos, muitos escritores e escritoras, inclusive este que lhe redige essa carta, não apenas em nosso Brasil, mas em outros países, como em África, foram influenciados pelo turbilhão de páginas criadas e recriadas por essa cabeça de cabelos fartos. Gente como Mia Couto, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Paulina Chiziane, entre outros e outras bebedores e bebedoras de sua fonte estavam ali a morrerem um pouquinho. Uma chacina.

Mas isso ainda diz pouco. Quase assassinaram dias, noites, madrugadas a fio em que se debruçou em sua máquina de escrever para dar vida à nossa cultura, esperança às vendedoras de acarajé, dignidade ao povo brasileiro, da Bahia de todos os santos para o mundo inteiro. Tudo jogado dentro de um saco e posto sem dor e sem consciência no lixo. No lixo…

Caro Jorge Amado, tentei resgatar as suas palavras, limpá-las em meio a páginas manchadas e amarelecidas, muitas estragadas. Estive em companhia de Tieta e com muito cuidado passei de leve o pano embebido em solução de compressa sobre ela para trazê-la à convalescença. Fiz o mesmo com muitos outros. Alguns recuperaram mais prontamente, teve aqueles mais necessitados e também os mais delicados. A vida é assim, cada qual com sua sorte e destino. Eu tentei.

Jorge Amado, desculpe a intimidade de chamá-lo assim em palavras sem saber se atrapalho o seu descanso (ou trabalho?). Atrapalho? Seja sincero. Principalmente por ser a primeira vez a fazê-lo de forma tão assim direta. Mas eu lhe digo: antes fosse apenas essa desculpa e não àquela, motivo dessa carta, isto é, a tentativa de assassinato. O meu pedido é porque eu como escritor e professor, ainda mais de literatura, em algum momento falhei. Poderia ter feito um pouquinho mais, falado mais de você para alguém, apresentado a sua obra, contado as suas historias. Talvez ao fazer isso tivesse chegado a quem teve a estupidez de fechar naquele saco plástico a riqueza que poderia ter lhe salvo a vida, não a sua ou a minha; a sua já está salva, a minha em tentativa, mas a dele mesmo ou dela e de tantos deles e delas nesse mundo, porque, infelizmente, em nosso país isso é fato corriqueiro e se a literatura é uma escada muito alta, e eu sempre acreditei nisso, mais vale deixar os degraus intactos a remendá-los. A subida é muito mais certa e segura contra a ignorância.

Bem, caro Jorge, nome de santo, Amado, nome do que mais se deve propagar nesse momento, como bem disse Angelo Campos, um amigo filósofo, fico por aqui, não sem antes enaltecer em alto e bom som que os livros estão comigo agora em ambiente seguro, não se preocupe.

Poderia acrescentar aqui nessas linhas a espera de sua resposta. Não acrescento. Deixo-o livre. Há de ter afazeres muito mais importantes por aí.

Cordialmente,

Leandro Bertoldo Silva.

P.S. Não poderia deixar passar a oportunidade de pedir-lhe que envie um abraço meu ao Graciliano, à Clarice, ao Carlos, ao Manoel, aos nossos Joões – o Cabral, o Guimarães e o Ubaldo -, ao Fernando, à Lygia, ao Gullar, Cecília, Henriqueta, Raquel, a sua saudosa Zélia e a tantos outros que foram em suas existências por aqui e ainda o são por aí autênticos e verdadeiros “influenciadores”, esses sim.

Que tempos! Que tempos!

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Bem, essa é uma daquelas histórias que nos fazem pensar: o que andamos a fazer com a nossa cultura, com os nossos valores? Livros não são amontoados de papel a jogar no lixo, são memórias a guardar na alma e a compartilhar com o mundo. O que acha disso? Comente. Compartilhe.

Forte abraço!

Até a próxima.

O VOO DE COLOMBO

Por Paulo Cezar S. Ventura
pcventura@gmail.com

Desde garoto Colombo gostava de subir qualquer coisa escalável. Com menos de um ano, engatinhando, subiu em uma cadeira à beirada de uma mesa, depois na mesa e chegou à janela. Com grades, ainda bem. Aos dois anos foi pego no alto da cortina da sala, escalou-a como se fosse uma corda. Daí a subir as torres da Cemig, para desespero de sua mãe, foi um pulo, quase literalmente.

Subiu montanhas, escalou falésias, se equilibrou em corda bamba, trabalhou no circo, suas ocupações sempre traziam esse interesse quase obsessivo pelas alturas. Quando foi procurar trabalho obviamente escolheu um que lhe permitia olhar as pessoas de cima, do alto de seu pedestal, como se fossem formigas carregando os jardins para casa, cada um a seu jeito. Ele sempre imaginava que, como pequenas formigas, as pessoas carregavam suas pequenas conquistas para casa e as guardavam como se fungos se tornassem e o bolor consequente os alimentasse ou os entorpecesse.

Não era exatamente a vida que queria. Só lhe faltavam asas para sua transformação em um ser humano da categoria dos himenópteros, ou dos columbídeos, bastando decidir se preferia ser inseto ou ave. Imaginava que seus pais já decidiram por ele. Colombo deve ser uma palavra derivada de columbídeo, pois, em língua francesa “colombe” é aquela ave universal conhecida no Brasil como pombo. Então, por que não voar como uma columbídea? Ou paloma, em língua espanhola? Gostava da expressão “paloma mensajera”, ou pombo-correio.

Em sua maturidade Colombo foi trabalhar na construção civil. Percebeu que suas habilidades alpinísticas o diferenciavam na profissão. Rapidamente subia nas alturas dos prédios em andamento, mesmo carregando um saco de cimento nas costas. Um empregado modelo, preferido pelos mestres de obra. Era querido também pelos colegas, que achavam diferente, um voado, sempre alegre. Tinha uma qualidade rara, intrínseca à sua personalidade: era querido pelas aves. Sempre haviam pássaros em seu entorno. Ele os alimentava, óbvio. Alguns pássaros o acompanhavam de uma obra à outra. Principalmente aquela pomba azul.

Pomba azul? Existe isso? Tal como o cisne negro, a gente pensa que não existem até vermos um. A partir dessa visão, essas raridades passam a nos acompanhar pela vida. Colombo deu até um nome para a pomba azul. Era Colombina. Formavam uma dupla, Colombo e Colombina. Ele até aprendeu a falar arrulhez, para emitir arrulhos tais que a Colombina. Deu certo, pois ela sempre aparecia quando ele começava a arrulhar.

Um dia, a Colombina azul não apareceu o que deixou Colombo preocupado. Não conseguiu trabalhar direito naquele dia. Recebeu com mau humor, raro mau humor, os deboches dos colegas.

— Está solteiro hoje, Colombo? Sua Colombina arrumou outro marido?

Fingiu não ligar, mas seu mutismo não era normal. Estava deveras preocupado. Passou o dia olhando o horizonte, arregalando os olhos na tentativa de ver ao longe se sua ave se aproximava. Nada. O sol já estava no meio de sua descida para se esconder atrás das montanhas distantes, desenhando no céu o pedaço diário de seu analema, quando ela chegou, machucada. Colombo tentou cuidar da bichinha, mas ela se manteve distante, ferida, dolorida.

De repente surgiu uma ave de rapina, um gavião ou um carcará, provavelmente o mesmo que a ferira, e desferiu mais um golpe em suas asas já sangrentas. Colombina tentou voar e caiu das alturas do prédio em construção. Colombo não teve dúvidas. Saltou, sem as asas dos columbídeos ou dos himenópteros. Esqueceu-se deste pequeno detalhe: suas asas eram apenas imaginárias e não suportavam o peso da queda. Morreu na contra mão sob os olhares assustados dos colegas peões da construção. A luz do sol do fim de tarde deu um colorido especial à cena, digna de um Sigaud, quiçá um Portinari, já que os dois eram amigos. De místico, virou música, do Buarque, que não sabia dessa Colombina, apenas de outra, da Noite dos Mascarados.

UMA HISTÓRIA INESPERADA

Por Leandro Bertoldo Silva.

Estava em viagem de ônibus para Teófilo Otoni quando entra um senhorzinho com um som portátil a tocar Dire Straits. Ainda bem que a música era boa. Ao sentar, seu celular chama e ele atende no viva-voz. Do outro lado a tal voz bem viva e sem se identificar foi logo dizendo tão alto quanto a música:

Moço, nem ti conto! Sabe o Seu João da Tutóia lá do Mandeu? Pois é, onti a gente tava lá e ele pegô um copo comprido com tampa em riba pareceno um canudo, ispremeu um bucado de limão dentro, sacudia, sacudia e abria a tampa, sacudia, sacudia e abria di novo; dizia ele que era pra sair o gás, sabe cumé? Com aquele troço sacudido, ele embrenhô um litro de cachaça lá dentro… Ê, minino! Mas nós entrô fechado naquele trem que dava até dó. Na hora de imbora, o Zaqueu aprumô uma iscada na carcunda e foi até bem. Mas quando chegô lá na frente, a iscada inganchô num gaio de arve que tava assim no arto, ele bambiô, iscorregô num arbusti e coiciô que nem cavalo bravo que só veno a disinbestança que foi. E aí num teve remendo! Foi Zaqueu prum lado, iscada pro outro, uma diabera danada… Ê trem da peste, sô. Teve bão dimais!

O senhorzinho foi responder quando a cobertura caiu. Entre as risadas de quem estava próximo e ouviu toda a história, fiquei a pensar de como a literatura surge pronta bem a nossa frente. Peguei meu bloco de notas e pus-me a registrar na tentativa de captar, entre um balanço e outro, o tom da voz que acabara de ouvir, sem saber se o que fazia era plágio ou uma apropriação indevida.  Pensei em pedir permissão ao dono do celular, mas já era tarde, não dava mais tempo. Ele havia decido. Ô diacho, sô.

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Pois é… Essa é uma daquelas histórias que nos pegam de surpresa quando menos esperamos. Vem, acontece e quando percebemos já foi. O privilégio de escrever é poder registrar e contar o que poderia ter sido perdido. Então me diz o que você achou e me conte aí: você já vivenciou histórias inesperadas?

Forte abraço!

Até a próxima.

ANIVERSÁRIO DA ACADEMIA TAGUATINGUENSE DE LETRAS

Por Paccelli José Maracci Zahler
(Brasília – DF)

Academia Taguatinguense de Letras,
Orgulho de nossa cidade,
Há 37 anos a promover,
A Literatura com dignidade.
.
Seus escritores e poetas,
Deixam sua marca na história,
Com obras e palavras lúcidas,
Constroem a nossa memória.
.
Em Taguatinga, cidade querida,
A Academia é um tesouro,
Um farol que ilumina a vida,
E inspira novos escritores.
.
Que siga por muitos anos,
A brilhar na comunidade,
Academia Taguatinguense de Letras,
Tradição da nossa cidade

ALGUMAS PALAVRAS

Por Leandro Bertoldo Silva

Escrever é uma habilidade necessária para todas as pessoas e, particularmente, para quem tem a literatura como estilo de vida. Para escrever com clareza é necessária uma anterior organização lógica do pensamento, podendo-se concluir que sem o pensamento logicamente ordenado não pode haver redação clara, inteligível. Isso significa que ensinar a escrever equivale a ensinar a pensar, tarefa obviamente impossível. No entanto, sugerir técnicas ou práticas que favoreçam o desenvolvimento do processo de redação é tarefa possível.

Quando assumi o compromisso de conduzir pessoas já experimentadas na leitura ao caminho da escrita literária, sabia exatamente aonde iríamos chegar: em um lugar onde o belo faria morada em nossos corações. Já vislumbrava estes livros que você tem a oportunidade de apreciar no vídeo abaixo, sabia das suas existências e até já conversava com eles. O que não imaginava é que eles trariam, junto com as palavras, a “calmaria” de uma amizade tão sincera, de uma admiração absolutamente profunda por cada pessoa, cada qual com as suas particularidades, com os seus sonhos, com as suas dores e cores. Tudo matéria-prima da escrita, ingredientes textuais que ao longo de doze meses teceram os mais saborosos pratos semânticos em um banquete de histórias.

Vivenciamos a linguagem, a leitura e a escrita de uma maneira na qual eu sempre acreditei: pelo amor, jamais pela dor e obrigação. Nesse lugar rimos, choramos, nos emocionamos, entramos nas vidas uns dos outros, soubemos de detalhes, nos pertencemos. Munimo-nos de ferramentas não apenas para um bom texto, mas para alcançarmos a qualidade de nossa humanidade.

Sim, a literatura é uma escada muito alta, e cada texto, cada verso, cada pensamento me fez chegar até o topo. Calo-me nesse instante, dando lugar às vozes principais presentes nestes livros agora entregues ao mundo. São eles, pelas mãos de quem os escreveram, as estrela a brilharem como sempre brilharam ao longo de suas feituras. Desejo apenas dizer uma coisa a todos e todas que acreditaram e se entregaram nessa travessia: por serem hoje mais um galho a crescer nessa Árvore das Letras a amparar os meus sonhos e mostrar que eu nunca estive errado, muito, muito obrigado! A literatura precisa de vocês.

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Para que você possa conhecer um pouco desse trabalho, acompanhe este vídeo de apresentação dos livros. Assim nos fizemos amigos, fortalecemos os laços já existentes e continuaremos nossa evolução literária agora com os Novos Autores.

Forte abraço!

Até a próxima.

DESENHANOTADOR DE LEMBRANÇAS INVENTADAS

Por Pierre André
https://www.instagram.com/pierrecontacontos/

Eu me lembro…

Eu me lembro…

Todos iam para os bailes

Brincar o carnaval

.

“Oh Abre alas que eu quero passar”

E tantas outras marchinhas

Agora querem passar, e passam,

Aqui, diante dos meus olhos…

.

Eu gostava de ouvir

Aquelas marchinhas

Tocadas naqueles

Fevereiros passados

.

Eu ficava em casa

Eu e o meu caderno

Não podia ir aos bailes

Criança ainda

.

Dias de baile

Dias de aproveitar

Meu caderno

De “anotações”

.

Não sabia escrever

Mas anotava tudo

Tudinho que eu pensava

Com desenhos

.

Desenhava tudo que eu ouvia

Pierrôs apaixonados

Colombinas desapaixonadas

Arlequins sempre felizes

.

Nunca os via,

Sempre os desenhava

Minha imaginação

Desenhava pra mim

.

Músicas diziam muito

Não só as dos bailes

De qualquer lugar

De onde saíam

.

rádios

Televisões

Banheiros

Bocas dos adultos

.

E eu “desenhanotava”

Tudo que ouvia

Até os sentimentos

Adorava “desenhanotar”

.

Desenhava

Cheiros do mato

O Molhado

Da terra molhada

.

O Bem-me-quer

Da Margarida

Eu sempre desenhava

Com lápis amarelo

.

O Mal-me-quer

Com lápis branco

No papel Branco

Ele nem aparecia

.

Ninguém via

O Mal-me-quer

Mas estava lá

Desenhanotadinho

.

Gosto do biscoito

Da tia Paulinha

Desenha também

E bem anotadinho

.

O que eu mais gostava

De desenhanotar

Era o perfume

Da “Flor-Cheirosa”

.

Nome inventado

Ela tinha outro nome

Eu nem sabia

Se chamava Jasmim

.

Desenhanotando

Tudo que eu gostava

Eu era sempre feliz

Eu com o meu caderno

.

Como eu amava

Escrever sem saber

Sem imaginar

Que estava escrevendo

.

Hoje não desenhanoto mais

Agora que sei escrever

Escrevo essas lembranças

Que acabei de inventar

.

Ah, eu me lembro

Me lembro de tudinho

Me lembro sim, viu!

NAUFRÁGIO ACADÊMICO

Por António Alexandre
(Angola)

Ainda vejo, aqui e acolá, muitos abraçados na escuridão e na incompetência.

Em plena época das trevas e da independência.

Ainda vejo o que os outros não querem ver

Ainda vejo o que os outros não querem ser

.

Adormecido na apetência da maldade

Vejo-me nas ondas do mar como um surfista da idade

Insatisfeito estou cá e acolá fazendo barulho

Na busca de paz sossego laboral e orgulho

.

Todos se escapam dele

.

Adormecido na apetência da maldade

Ainda vejo o que os outros não querem ser

Sem brilho sem ninguém ao lado para ofuscar

Naufragou, ele, assim por excesso de maldade.

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E você, o que vê?

Forte abraço!

Até a próxima.

FOI LÁ NA VENDA DO SEU LIDIRICO

Por Leandro Bertoldo Silva

“Foi lá na venda do Seu Lidirico…
tem de tudo e cada coisa que tem eu explico…”

Foi lá na Venda do Seu Lidirico que eu conheci em 2018 uma das lendas, agora não viva pelos lados de cá, mas pelos lados de lá, da nossa história: Lidirico José de Almeida, o Seu Lidirico. Atleticano, nascido em Novo Cruzeiro (hã?!), no ano de 1927, chegou na cidade de Araçuaí, no Norte de Minas Gerais, em meados da década de 40 e, como ele mesmo me disse, se voltou a sua cidade de cinco a seis vezes ao longo de todos esses anos foi muito. Desde então, ele mantinha um dos pontos comerciais mais tradicionais do lugar: a Venda do Seu Lidirico, “que tem de tudo e cada coisa que tem eu explico”… E como explicava…

Sentado em uma cadeira simples de bar ao lado da neta atrás do balcão, Seu Lidirico chegou a levantar quando nos viu – eu, minha esposa, minha filha, minha sogra e meu sogro Gelson Pinheiro, outra lenda viva da nossa história que merece capítulo especial.

Tínhamos ido de Padre Paraíso a Araçuaí para conhecermos dois lugares muito comentados: uma “flor e cultura”, que não floresce apenas flores e transpira cultura, como tudo naquela cidade, e… a Venda do Seu Lidirico.

A floricultura era o primeiro destino. Por isso, Seu Lidirico sentou-se pacientemente como se soubesse que o melhor sempre fica por último, afinal o apressado come cru, como diz o bom mineiro. Acenei para ele como quem falasse “estou indo aí” e podia ver as histórias e causos se ajeitando em sua cabeça para serem contados, como se já não tivessem sido centenas de vezes…

A conversa de mineiro de que um lugar fica bem pertinho um do outro, “bem ali”, esticando o beiço, nesse caso era verdade. Era só atravessar a rua. Quem vai em um tem que ir no outro. E Seu Lidirico estava lá nos esperando certo da nossa visita.

Nunca havia conhecido uma celebridade de verdade, porque as falsas se acham; as verdadeiras acham as pessoas, no carinho das mãos que recebem, no afeto do aperto que sentimos na verdade do coração como uma ponte que liga pessoas. Foi assim, nesse bem-querer, que fomos recebidos por Seu Lidirico e sua esposa, Dona Iaiá, chamada por sua neta a pedido dele.

Não sabíamos para quem olhar. Os casos se misturavam e se completavam sempre com precisão de datas e uma memória invejável de quem a própria história pedia licença. O início da venda, as primeiras casas da rua, os únicos dez carros da cidade, se muito, quando chegaram, a data do casamento (1948), o número de filhos – quinze no total – e os mais de 30 netos somando, ao todo, 98 pessoas vivas, excetuando uma nora que morreu intoxicada na fazenda – “só morreu essa nora nesses anos todos”, explicava Seu Lidirico, eram algumas das muitas histórias que se sucediam.

Esses e outros causos, até a partida do Atlético contra o São Paulo na noite anterior vencida pelo time mineiro com gol contra, eram contados, comentados e explicados enquanto apresentava as famosas cachaças produzidas por um dos filhos na região que, claro, provamos, eu e meu sogro, e levamos dois litros, enquanto Dona Iaiá dividia a conversa entre o engarrafar outros dois litros de cloro para a venda e as fotos tiradas sempre atrás do balcão, como se aquela amizade nascente já fosse antiga.

Fico feliz em encontrar pessoas assim em que a simplicidade é verdadeira e que a história também se faz espontânea na hora, sabendo que está sendo escrita e conhecida não apenas nas páginas dos livros, mas ali, ao vivo, porque se tem um lugar que tem história para contar é mesmo lá na Venda do Seu Lidirico.

Para que possam conhecer mais do que tem na Venda do Seu Lidirico, passa lá, é bem ali… Pertinpertin, um tirin de bala de bodoque, no Norte de Minas Gerais, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Mas se não der para ir, se avexe não, como dizem por lá, ouça abaixo a música, pois até música feita por Miltinho Edilberto e Xangai, apresentada no programa Sr. Brasil, do Rolando Boldrim (outra lenda), Seu Lidirico tem, afinal, é a venda do Seu Lidirico, “que tem de tudo e cada coisa que tem eu explico…”. E ele também! E como explicava…

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Existem histórias que é preciso contar e recontar. Essa já esteve por aqui, logo quando eu conheci o Seu Lidirico em 2018. Mas republico em homenagem a essa lenda que nos deixou em 17 de junho de 2023 e que eu tive o prazer de conhecer e prosear.

Vai com Deus, Seu Lidirico!

Forte abraço!

Até a próxima.

A SABEDORIA DO DESAPEGO

Por Valéria Cristina Gurgel

Certa vez um sábio caminhava em silêncio por uma praia deserta junto a um de seus jovens  discípulos, quando ele lhe perguntou:

— Mestre ensina-me a arte do desapego? Em minha humilde opinião é a mais preciosa de todas as artes!

— Você já construiu um castelo de areia?

— Não, Mestre! Para quê o faria?

 São feitos de meras ilusões!

— Construa, cuide, aproveite, desapegue-se!  Orientou o Mestre, seriamente. Jamais altere essa ordem.

O jovem sentou-se na areia e começou a engenhar uma suntuosa arquitetura de areia. Aquelas horas que se sucederam, nas quais ele se dedicou àquele grande feito, não teve pensamentos paralelos, viveu e desfrutou daquele momento, não teve olhos para outra coisa. Estava no momento presente. Ele construiu, cuidou, aproveitou… Mas a maré subiu, as ondas se agitaram e o castelo se desmanchou.

Frustrado, mesmo já prevendo o que logicamente aconteceria, ele se recolheu ao descanso ali nas proximidades onde estavam em um retiro com demais colegas.

No outro dia, novamente caminhando com seu Mestre, o jovem relatou o ocorrido no dia anterior, na praia e o Mestre outra vez lhe recomendou:

— Vá e construa um castelo de areia! Construa, cuide, aproveite, desapegue!

E o jovem discípulo bastante desanimado obedeceu e construiu outro castelo de areia, ainda maior e mais belo que o anterior.  Ele construiu, cuidou, aproveitou e veio a maré e o levou!

Assim se sucedeu na praia por quarenta dias em que passou em companhia de seu Mestre, construindo castelos de areia. Construía, cuidava, aproveitava e se decepcionava quando as ondas vinham e os levavam sem dó, nem piedade.

Pela quadragésima vez o Mestre o recomendou:

— Construa um castelo de areia!

Dessa vez, o jovem construiu, cuidou, aproveitou e se foi, sem olhar para trás! Já não estava preocupado quando as ondas viessem para destruí-lo e o tomasse dele.

O Mestre o chamou e disse:

— Agora sim, você entendeu.

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Existem histórias que que é preciso se calar após a leitura para que possamos refletir… Essa é uma delas.

Forte abraço!

Até a próxima.