O SEGREDO DE GABI

Por Leandro Bertoldo Silva

Gabi guardava um segredo. Bem, segredo é uma maneira de dizer, porque ela o contava para todas as pessoas, pelo menos para quem quisesse ouvir; ouvir e ler, pois a menina o escrevia em formas multifacetadas de poesia. Toda ela era um brincar de versos. Havia palavras em seus cabelos, rimas em seus gestos cheios de sossegos, métricas em seu olhar. Ninguém entendia a simplicidade em que vivia , mas Gabi naquele seu versejar de oásis repetia, repetia: “sensação de veludo. Lembrem-se! Sensação de veludo”.

O tempo passava descompassado e ninguém sabia o significado daquelas palavras. Gabi sorria, Gabi corria, Gabi dançava. Não sei se os segredos têm os seus métodos, como diziam os incrédulos, mas não havia pessoa a duvidar da felicidade daquela miúda. Como podia? Na cidade dos Afazeres não cabia sorrisos. Trabalhava-se de manhã à noite. Isolavam-se nas fábricas de tecnologia, inventavam-se inteligências, criavam-se máquinas, tudo para resolver o grande problema: onde estaria a felicidade que não vinha? Na falta de resposta e na tentativa de encontrá-la, lá se iam mais máquinas cada vez mais potentes e portáteis para facilitar o manejo e as pessoas as adquiriam ao preço do seu próprio tempo.

Enquanto isso, Gabi sorria, Gabi corria, Gabi dançava. “Sensação de veludo. Lembrem-se! Sensação de veludo” — repetia.

O caso de Gabi foi parar na cúpula de Afazeres. A menina mantinha junto de si um caderno. Há tempos não se via um daqueles. Capa de couro com fitas trançadas como fecho. Uma coisa daquela tão antiga só poderia guardar o tão almejado segredo. Mas como algo tão importante estaria em posse de tão pouca criatura? Chegava a ser infâmia. Cientistas, engenheiros, designers, programadores, até influenciadores debruçavam-se dia e noite na tarefa de buscar a felicidade, mas era em vão. Interrogada pelas autoridades, Gabi apenas sorria sem entender muito a razão de tanto alvoroço e seguia a escrever sua dança e seus movimentos. Todo o seu tempo era destinado às palavras que brotavam de si e também àquelas percebidas em meio a outros, como o cair da folha e o nascer do fruto, a gota de chuva a navegar na janela em sonho de barco, o voo da ave a colocá-la em estado de garça e tantas outras coisas que ela colhia e outras mais que só ela sabia.

Um dia o caderno foi confiscado. Seria analisado pelas autoridades competentes de Afazeres, assim disseram. Contudo, algo curioso aconteceu: o tempo passava e passou também para Gabi, que já não era mais uma criança. O caderno nunca fora aberto. Gabi havia sido proibida de escrever. O motivo ninguém dizia, só não entendiam a felicidade que ainda fazia morada dentro dela ao vê-la pescar luzes e a colorir a vida de pássaros em meio à natureza da alma ecoada pelo mundo.

Sem suportarem mais a curiosidade e ao desistirem de inúteis tentativas de descobrirem por si o segredo de Gabi, um decreto foi instaurado: que fosse aberto o caderno! Alvoroço geral, mídias e redes sociais não noticiavam outra coisa. E assim foi feito. Em posse de tanta euforia, lá se depararam com as coisas simples da vida. Com letra de poeta, lia-se:

“As coisas simples parecem bobas.

Mas deveriam ser percebidas de modo genuíno.

O trigo em embalagem de papel

pode parecer estranho,

mas gosto da textura do papel na mão,

do aconchego da receita naquele contato.

.

Ah! E o café coado fresquinho?

O cheiro da terra que a chuva desperta.

O som de um bando de aves voando ao entardecer.

A água do chuveiro caindo na cabeça,

de olhos fechados e corpo submerso.

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Andar de meias em dias frios.

Tomar água com muita sede.

Conseguir pegar o pão

que acabara de sair do forno na padaria.

Passar a sola dos pés em um tapete fofinho.

Respirar fundo e soltar o ar.

.

Cada detalhe desses traduzem o que chamo de

sensação de veludo.

É quando viver preenche tanto os tatos da vida

que na maciez dos sentidos

contemplo o belo do existir.”

.

Assinado: Gabriela Lopes.

E não houve mais segredos.

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Essa história foi escrita inspirada na poesia “As coisas simples da vida”, que está no livro Versos, dores e cores, da poetisa Gabriela Lopes. Nasceu de uma proposta da Vivência Novos Autores de escrever prosa a partir da poesia. Como escritor, gosto de ler poesia para escrever prosa, pois muitas são as histórias contidas nos versos. E o melhor de tudo é que as histórias sempre são outras a partir de cada olhar… Gratidão à Gabriela por permitir essa troca. E você, gosta de poesia? Curta, comente. Essa ação é muito valiosa para mim.

Forte abraço!

Até a próxima.

LAVE MARIAS

Por Valéria Cristina Gurgel

“Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado”
(Rubem Alves).

Tão logo raiava o dia, em fila, desciam o morro cantando. Passos firmes equilibrando suas bacias, sem titubearem.  Elas se reuniam à beira do Rio das Velhas. Quanta ironia! Elas eram jovens e belas donzelas, em sua maioria. Elas amavam, elas sorriam, elas viviam. Os pés descalços ziguezagueavam entre as pedras e a correnteza cristalina.

Não deviam esmorecer o labor, traziam no rosto o fervor, e na pele essa marca da raça, da estranha alegoria que trazia fé para a vida. Não sentiam o frio e rodopiavam leve e soltas, esnobando a alvura dos lençóis bailando às seis da matina.

Suas jovens mães e avós, precocemente viúvas, permaneciam em casa cuidando dos filhos menores, dos netos, sempre numa escala acirrada de zero a dez. Os mineiros morriam jovens, enterravam a dura ilusão trabalhando na Mina chamada Morro Velho, fatídica dicotomia. Os órfãos amineiravam sonhos de pedra de minério, que viravam pó, sem brilho de valor. Cresciam soltos brincando de alegria pueril e disputando um lugar ao sol.

Mas as mulheres não se queixavam da escassez de futuro. Ali havia excesso de presente. Era preciso ter força, ter garra, ter gana sempre, pois, a labuta diária nas águas daquele rio caudaloso lavava o suor e até os pensamentos insalubres.  Esfregavam as roupas e os problemas com sabão de cinza, o que estivesse mais encardido quaravam e batiam na pedra e, aos poucos, como uma magia, as manchas iam se desfazendo em cada peça e também no coração.

O rio seguia seu curso, desviando obstáculos, sem alterar a rotina das lavadeiras. Lave Maria, lave Maria era o som, era o dom e o canto das corredeiras. Elas lavavam as roupas e as dores da alma e enxaguavam o destino atentas aos redemoinhos.

Elas contavam histórias, as suas, as delas, as nossas. Elas cantavam cantigas de roda, religiosas, folclóricas, inventadas, inspiradas nas dores, nos amores, nas glórias. Lave Maria, lave Maria, lave Maria.

Lavar roupa todo dia, não era uma agonia para essas Marias: andorinhavam a paz do azul celeste sobrevoada no leito do rio.

São todas Marias protagonistas da vida ganhando o sustento de suas famílias.

Lave Maria, Lave Maria, Lave Maria…

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Lave Marias é uma das histórias do livro “Guirlanda das Emoções”, da escritora Valéria Cristina Gurgel. A obra, publicada pela Árvore das Letras, através do selo Alforria Literária e parceria da Editora Rolimã, é fruto da Vivência Novos Autores, uma imersão de sentimentos por meio da leitura e escrita que tem o objetivo de aprimorar a percepção literária e metafórica das histórias que lemos e ouvimos, e ainda aplicar técnicas criativas e afetivas na produção de narrativas e poesias.

Para saber mais sobre a vivência, clique AQUI.

Para adquirir o livro “Guirlanda das Emoções”, entre em contato com a autora no perfil https://www.instagram.com/valeriacristinagurgel/

Forte abraço!

Até a próxima.

O CHÃO DA MINHA TERRA

Por António Alexandre
(Angola)

A caminho, para Sequele musseque, vi-a cantar vitória.

Porém era uma vitória sem glória.

Numa manhã de ditadura

Vi cavalos e cavalaria em aventura.

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A vitória era doce como o mel.

E por ser bom demais

Os abutres deram-lhe o fim

Tão doce tão curto e tão ruim.

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A vitória era como a ereção do desejo

Tão doce, que vi o chão perdendo o fundo.

E os olhos também se foram embora para longe.

.

A vitória também era como o solo

Hoje pilhado e seminu ficou para os pés descalços.

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Cada um de nós têm as suas lembranças e afaga as suas memórias. O poeta António Alexandre nos traz as lembranças de um chão que pisou. Qual a memória do seu chão?

Forte abraço!

Até a próxima.

LÁUREA MANHÃS

Por Tomé Nasapu
(Angola)

O pernoitar das reflexões profundas
Sintoniza-nos a ritmos, sons e danças
Que o real nos nega.

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Viajando no além,
Com a estrela polar
Sem chegar à Belém.

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Perscrutando o murmurar do conhecimento corcunda
E nos perdemos!
Nos perdemos numa viagem sem volta
Realismo suplantado pelo imaginário
Onde o tempo não se sobrepõe as circunstâncias
Só as energias importam.

.

Veem-se comportas
Abrem-se e inundam o vazio do pensamento.

.

Não sabemos!

.

Não sabemos se fugimos do real ou do imaginário.

.

Não sabemos!

.

Não sabemos o sentido da vida
Buscámo-la a qualquer custo na alma ferida
Quando nos demos por conta
Láureas manhãs!
E as almofadas de ar fresco
Aliviam a dor profunda.

O PREÇO DA MODERNIDADE

Por Leandro Bertoldo Silva

Descobri mais uma função da literatura além de nos salvar de nós mesmos: nos salvar da modernidade! Pelo menos a se tratar de uma aqui, outra ali, ou seja, de todas. Misericórdia! Assim fui eu a mais uma história de ônibus! Já estou a pensar no tamanho dessa coleção. Vamos lá!

Ao me aproximar da rodoviária de Padre Paraíso com destino a Teófilo Otoni, vejo, de longe, uma grande aglomeração. Gestos, falas, algumas mais exaltadas, gritos de absurdo e muita, muita gente sem saber o que fazer. Pela quantidade de pessoas, algo não muito normal para a cidade, ainda mais naquele horário de 15h, tive certeza: tem coisa aí. Não demorou a ver dois viajantes sem direito a embarcar e depois mais um, mais outro e outro mais, inclusive eu, igualmente posto na mesma situação.

— Mas, moço, eu nem tenho passagem ainda!

— Não tem e nem vai ter — disse para mim o atendente com a maior cara de enfado por quem já repetiu o motivo dezenas de vezes: “Não há sinal de internet e sem internet não é possível emitir o ticket de passagem”.

— Como é que é?

Eu tenho que viajar, não posso perder o ônibus, tem gente me esperando, minha mulher vai me matar… Começou a enumerar o atendente todas as objeções ouvidas e ainda repetidas pelas pessoas em minha volta.

— Mas isso é um absurdo!

— Essa é a campeã. Estão me dizendo isso desde ao meio dia.

— Meio dia? Está sem internet desde meio dia?

— Para o senhor ver como estão os meus ouvidos.

— E dentro do ônibus? Não é possível comprar a passagem dentro do ônibus?

— O senhor tem dinheiro?

— Ora, mas é claro! Como o senhor acha que eu compraria a passagem? Com dinheiro!

— De papel? É, porque dentro do ônibus só com dinheiro de papel, porque no cartão não tem conexão…

Foi quando reparei toda aquela gente esbaforida a lançar impropérios com seus cartões na mão. Como é possível? “Cadê o dinheiro que estava aqui”? Não era assim a brincadeira do toucinho com o gato quando éramos crianças? Seja como for, não mais falei nada e fiquei a admirar toda aquela confusão ao constatar o preço da modernidade. Além do toucinho, onde andaria o kichute a fazer às vezes da chuteira nas peladas no campinho de terra? Os álbuns de fotografias, a latinha de quitute com a chavinha para abrir, o radinho de pilhas recarregadas no congelador, o copo sanfonado de plástico fácil de ser transportado e tantas outras coisas sempre a nos atender muito bem? Cogitei seguir viagem de carro. Mas isso também já não era possível! Eu não tenho carro, e seria preciso pegar um taxi, porém os motoristas só viajam pela manhã.

Sem dinheiro de papel, sem carro, sem nada das minhas lembranças e agora também sem celular, pois, ao pegá-lo para avisar às pessoas, sim, a minha esposa também, o acontecido, a bateria acabou…

Aí não teve jeito. O pensamento veio forte! Fosse no tempo das cartas e as passagens emitidas à mão ou até em maquininhas, mas sem internet, nada disso teria acontecido. E ainda há aqueles a dizerem que o mundo de hoje é muito melhor ao do passado! Ah, quanta saudade dos orelhões e dos telefones de discar…

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Muito obrigado mais uma vez por sua leitura. Espero que essa história contribua para a sua nostalgia ou pelo menos para refletir do como a vida, mesmo menos moderna, era mais funcional em muitas coisas… Você lembra de alguma?

Forte abraço!

Até a próxima.

BREVE CARTA À ANNE FRANK

Por Leandro Bertoldo Silva

Querida Anne Frank. Hoje é o meu aniversário. 04 de agosto de 2023. Exatamente no mesmo dia que há 79 anos foi o pior momento da sua vida. Fecho os olhos e tento imaginar o horror daquele acontecimento em que os soldados da Schutzstaffel, do Partido Nazista alemão, juntamente com outros policiais invadiram o anexo secreto na rua Prinsengracht, 263, em Amsterdã, e descobriram onde estava escondida há 2 anos com sua família e amigos, levando-os para os campos de concentração de Auschwitz e posteriormente a Bergen-Belsen naquela segunda guerra mundial, onde veio a nos deixar. A liberdade estava tão perto! Foi por tão pouco, meu Deus… Como o medo deve ter paralisado a sua alma! Você tinha apenas 15 anos… Pois vim ao mundo 28 anos depois desse dia terrível ao da descoberta. Ao saber disso fiquei muito triste, principalmente porque essa data sempre foi uma celebração para mim. Como pode um dia ser tão pavoroso para alguns e tão maravilhoso para outros?

Sabe, Anne, tenho comigo um sentimento estranho. Desde quando soube disso, mesmo nascido em outro país tão distante do seu e em outra época, sinto-me com uma espécie de dívida, não histórica, mas minha mesmo, pessoal, de transmutar esse dia em luz. Redimir um ato o qual não provoquei ou sequer participei – assim espero e imploro – torna-se um compromisso a fim de não destruir a minha humanidade. As daqueles militares foram destruídas, como cada vida ceifada pelo ódio obediente e inexplicável; outras tantas foram condenadas como a sua.

Desculpe, Anne, por fazer desse 04 de agosto de hoje — o meu 04 de agosto — sorrisos, tão diferente do seu de lamentos e perdas e choros e sombras. Mas sabe de uma coisa? São neles, nos sorrisos, a morada de fazer do meu destino o melhor a cada dia. E não digo isso por mim, mas por você e por cada pessoa abandonada na sua dignidade de existir, independente de tempo e espaço. Venho nesse 04 de agosto a servir, a fazer o bem a quem necessitar, a reconstruir almas e oferecer possibilidades. Toda a minha vida tem sido assim.

Anne Frank, se for possível, perdoe a minha felicidade. Em troca dou ao mundo, principalmente pela palavra, a qual você tão bem conhece, a minha entrega e o meu servir.

Respeitosamente,

Leandro Bertoldo Silva.

CARTA AO QUERIDO MESTRE PIERRE ANDRÉ

Por Regina Lúcia Caminha Tôrres

Olá meu amigo MESTRE Pierre André,

Neste momento, fiquei sabendo que você está mais uma vez internado. Fiquei triste. Passou mal, mais uma vez, dos efeitos colaterais dos remédios imunossupressores que toma devido aos dois transplantes (de rins e pâncreas) a que se submeteu há alguns anos. Pena que o Diabetes voltou depois de 1 ano e 8 meses do transplante.  Você gosta de se vangloriar que foi o primeiro transplantado de 2 órgãos ao mesmo tempo. Olha você FAZENDO história!

É bonito de se ver o quanto é guerreiro e ainda agradece a Deus por dispor de um remédio que médico algum coloca nas receitas, que é o seu trabalho de CRIAR, ESCREVER e CONTAR HISTORIAS. Sua forma de contar histórias é cheia de encantamento e alegria, brindando a todos com poesia, cantigas, brincadeiras, dancinhas e bonecos arteiros como o Pitoco, que vive dentro de um tambor com vários apetrechos de histórias de seu companheiro de jornada. Necessário também dizer, como é criativo com mídia! Seus podcast ou programas de rádio são deliciosos. Agora inventou o lambe lambe e histórias da Disney. Na lojinha do Mestre Pierre André, tem múltiplos talentos, tem teatro, cenografia, figurino, música, carroça e invencionices mil, inclusive muita poesia!  

Quem te viu e quem te vê, não imagina como sua saúde é frágil desde pequenino e que toma injeções de insulina várias vezes ao dia. TRABALHADOR que é, enfrenta estas tantas pedras pelo caminho com tal desenvoltura e MAESTRIA, que chega a ser inacreditável! Chega a ser invejável!

Conheci você em 2014 lá em Lagoa Santa, num curso de Contação de Histórias com Beatriz Myrrha. Havia um incêndio próximo e nossa motorista desistiu, retornando a BH. Eu e Simone Santos descemos na rodoviária e voltamos de táxi para assistir sua apresentação de manejo de bonecos, que foi super divertida.

Eu me lembro que você era chamado de “contador de 3 histórias”. De repente, houve uma virada. Não sei precisar as datas, mas fui assistir à formatura de uma nova turma sua de contadores de histórias. Lembro-me de você dizer que não ensinava nada, apenas permitia que o contador de histórias que há em cada um de nós desabrochasse… Em meio às apresentações, verdadeiros diamantes se mostraram à nossa escuta apurada. Você chegou a desenvolver toda a família da Simone Santos como contadores de histórias. Bernardo brilha como uma constelação!

Você organizava apresentações em hospitais, no Parque Municipal, criou, junto com Beatriz Myrrha o Encontrão, 24 horas de Contação de Histórias narradas voluntariamente, com gente de todo o Brasil! Um sucesso repetido! Uniu, transmitiu e revelou muitos de nós! Uma belezura de se ver!

Parece que você também desabrochou e a criatividade foi crescendo… crescendo… que nem a árvore do João e o Pé de Feijão! Chegou até o céu!

No início de agosto de 2022, Leandro Bertoldo criou a “Turma Manoel de Barros”, do Vivenciando a Linguagem, Leitura e Escrita e tivemos a oportunidade de trilhar e abrir estradas através de nossas memórias afetivas, leitura de textos, músicas, poesias, fotografias, dobraduras, cartas e intimidades trocadas. Nossa turma incluía você, meu Mestre Pierre André, Rosi Amaral, Carolina Bertoldo e Luzia Maria de Souza.

Tenho muito a agradecer a cada um, em especial a outro Mestre da Literatura – Leandro Bertoldo, que criou um espaço para trocas que enriqueceram a caminhada literária de cada um de nós. Aprendemos muito uns com os outros e, tenho certeza que muitas sementes germinaram e hão de dar muitos frutos.

Teria muito a falar de todos, muitas mudanças aconteceram através das palavras ditas ou escritas, mas esta carta é para você, caro amigo Mestre Pierre André.

Em 15 de agosto de 2022, Pierre André diz: “ Transplagiei o haicai do Leandro em Aldravia. (Alguém teve a curiosidade de saber o que é?). Como Manoel de Barros, desandou a “preencher vazios com peraltagens com as palavras”, abrindo portas para o infinito do imaginário e do brincar.

                     “ Tempo, seu bobo!

                      Quer me “des-Criançar, é?      

                      Vai querendo, viu!…”( haicai do pi)

A poesia arrepia e, de madrugada, “ debaixo das cobertas entre o frio e os garranchos”, sonhando talvez e tentando “guardar o tempo”, você começou a escrever sobre lembranças e objetos de uma caixa chamada coração, cheia de lembranças como “pai, mãe, Pretinha, fuxicos, latinhas e penico esmaltado”. Os mais de 100 textinhos poéticos saíram da caixinha e foram revelados a nossos olhares curiosos e divertidos.

                  ‘Querendo voar

                    Contando histórias  

                   Voei de balão” (Pierre André)

A professora Rosi Amaral lhe enviou uma carta dizendo que só ela sabia do segredo: Manoel de Barros estava participando de nossas oficinas, disfarçado de Pierre!! A carta tinha até um xique-xique lá dentro! Manuel de Barros respondeu a carta de Rosi Amaral, anotando o nome no remetente. Foi algo extraordinário, até transcendental, quando a moça do correio chamou você pelo nome do remetente: Manoel de Barros.

Você se disse estar “contaminado” por uma doença, que revelou o PIERRE MANOEL e criou “inventações”.

                   “Estou des-sofrendo de

                     Manoelsisse.

                     Se tiver remédio para isso,

                     não me deem a receita”. ( Pierre André)             

Questionei no ZAP: “ Maravilhosa doença esta.100 haicais publicados no face e ainda consegue trabalhar, comer e dormir? ”

Mas a resposta veio breve:

                     “O alfaiate

                      Costurando palavras

                      Doce feito mel” (Pierre Manoel)

                       “ Conjugação do verbo

                        Manoelar

                         EU MA, tu NOEL

                         Ele, nós, voz, eles, cadê?

                         DE BARROS, uai. ”  (Pierre Manoel)                         

Está me parecendo, que com a força criativa que te contagiou, logo terei o meu amigo reconhecido como grande escritor, até premiado! Quero te agradecer por ter me permitido participar da intimidade deste des-velar do ESCRITOR que há em você. Foi divertido e até fascinante, participar de momentos tão fortes e “ crianceiros”, ver você sendo MESTRE PIERRE ANDRÉ, “ sentindo borboletas na imaginação”.

Gratidão a você e aos novos amigos PARA SEMPRE! Esta carta visa fixar para a posteridade, estes momentos da TURMA MANOEL DE BARROS. coordenada pelo também Mestre Leandro Bertoldo. Momentos que ficarão em minha CAIXINHA DE MEMÓRIAS! Fotografei um poeta sensível, fotografei um artista desabrochando aos cântaros. O mundo está mais rico!

Abraços carinhosos, querido amigo.

Regina Lúcia Caminha Tôrres

Belo Horizonte, 22 de julho de 2023, às 22,55 horas.

É CADA UMA QUE PARECE DUAS

Por Leandro Bertoldo Silva

Tem coisa que acontece e parece mentira. Quantas vezes você já ouviu alguém dizer isso? Eu mesmo já ouvi muitas vezes. Ouvi e presenciei.

Outro dia estava na varanda da minha casa com a Rocinante – minha bicicleta de livros. Para quem não sabe, Rocinante é uma bicicleta cargueira retrô, usada como bancada de trabalho, onde, além de escrever, confecciono livros e cadernos em uma prensa de madeira, a qual chamo de “Paula Brito” em homenagem a Francisco de Paula Brito, tipógrafo do século XIX, contemporâneo de Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Para isso, adaptei em sua garupa uma mesa também de madeira com gaveta, pois serve não apenas para guardar linhas, agulhas e outros apetrechos de artesania, como dinheiro, sim, dinheiro, já que é também uma loja itinerante graças à mala aberta cheia de livros prontos cuidadosamente dispostos para venda na parte da frente da carga. Com ela eu vou às feiras literárias, praças de eventos e onde mais é possível.

Mas nesse dia estava mesmo era na varanda de casa. Iria receber uma turma de alunos de uma escola com mais ou menos 40 jovens, moças e rapazes, ávidos por conhecerem o processo de fabricação de um livro, coisa rara, só possível mediante a ação de uma boa professora.

Preparei a Rocinante com todo o cuidado sem deixar faltar nada, nem mesmo o pano bordado de tecido fino debaixo da mala, o chaveirinho de filtro dos sonhos no guidom e o lencinho amarelo com uma rosa vermelha para dar aquele charme poético e especial, afinal ela não é qualquer bicicleta, é a Rocinante e precisa ficar bem bonita.

Hora marcada e lá chegavam os alunos com a professora naquela algazarra tradicional e prazerosa dos adolescentes, principalmente ao saírem de sala de aula e estarem em um lugar diferente.

O momento era simples: consistia em mostrar aos meninos e meninas todo o processo de confecção dos livros na “Paula Brito”, desde a colagem da lombada e, principalmente, a costura à mão com linha e cera de abelha para receber a capa de papel ecológico. Assim estava eu nesse trabalho minucioso ao explicar cada detalhe. E como cada detalhe é de fato minucioso a justificar até mesmo a redundância, pois vai agulha e vem linha, torna a passar e torna a ir, os alunos, agora atentos em silêncio raro, se aglomeraram bem perto da bancada com olhos e ouvidos atentos. Pela posição da bancada todos olhavam para baixo com a atenção total em minhas mãos. Nisso entra uma senhora manhosamente do nada a pedir passagem em meio aos jovens. Vem com um arrastar de chinelas e um pescoço esticado a fazer companhia aos olhos compridos. Mas tal foi sua surpresa ao constatar a razão da reunião, que soltou em alto e bom som:

— Ah, não! Pensei que fosse um velório…

E saiu tão desapontada quanto brava, pois onde já se viu aglomerar tanta gente em silêncio em uma casa a olhar para baixo em torno de uma mesa se não fosse para ser um velório e dos bons? Alguns jovens seguravam para não rir, outros não se davam a esse sacrifício e riam à solavancos enquanto a pobre senhora, decepcionada e sozinha, se afastava irritada por não ter uma boa historia para contar sem imaginar que deixava uma muito melhor para trás.

Não foi fácil retomar a atenção. Ora, também pudera! O fato havia sido inusitado por demais para fingir normalidades. Uma senhora não se sabe quem, surgida não se sabe de onde a falar uma patuscada daquelas. Ainda bem estarmos no final da apresentação. Quando os alunos foram embora, fiquei eu e a Rocinante a refletir o acontecido durante um tempo e a certeza de um velho ditado: É cada uma que parece duas… Já ouviu isso também?

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Obrigado por sua leitura! Espero que tenha gostado dessa história. Elas acontecem comigo em toda parte. Curta, comente, compartilhe. Para nós escritores isso é muito importante. A propósito, você já viveu alguma situação inusitada, dessas inesperadas? Conte pra gente.

Forte abraço!

Até a próxima.

A RAINHA SANTA ISABEL DE ARAGÃO

Por Luzia Maria.
Integrante da Vivência Novos Autores.
De uma viagem feita a Óbidos em Portugal em 2022.

Reza a lenda ou a história, não sei bem, que havia uma princesa que se tornou rainha de um reino tão, tão distante nos arredores de Portugal. Ela de chamava Isabel!

A menina ainda jovem já era pretendida por vários reis, devido a sua formosura e bondade.

O Rei Don Dinis apaixonou-se perdidamente pela bela princesa e foi o escolhido para com ela se casar.

Isabel, agora rainha, além de bela e formosa era de extrema bondade e simpatia.

Todos a admiravam e diziam:

— Nossa rainha Isabel é uma santa!

— Ela é misericordiosa com os que sofrem…

Outros ainda diziam:

— Ela dá de comer aos pobres e trata com carinho e respeito os mais humildes e necessitados.

— Parece uma criança feliz em meio aos miúdos, diziam.

E Isabel era assim mesmo, desse jeitinho. Alegre, caridosa, inteligente e muito bem quista por todos.

Todos os dias recolhia pães e outros alimentos do castelo, enchia sua cesta e saia feliz para distribuí-los a quem necessitava.

Afinal era o certo a fazer. Se o povo trabalhava para que o rei e a rainha fossem alimentados, nada mais justo que eles, o povo, também fossem sustentados pelo próprio trabalho.

Porém, o rei que não era muito sensível às demandas dos seus súditos, não se agradava desse gesto de sua amada rainha e passou a proibi-la de levar alimento do castelo para o povo…

— Minha amada rainha, doravante (afinal ele era um bom e velho português), não sairás mais do castelo a levar nosso alimento para o povo. Põe-te a meu lado sempre e esquece esse povo.

Isabel não era muito de aceitar ordens, mas era doce e ponderada. Ela encontraria uma forma de continuar alimentando o povo.

— Meu amado rei e senhor, temos tanto e nosso povo padece de fome. Crês que isso é justo? Enquanto temos tanta fartura o povo que nos alimenta nada tem para comer. Tudo lhes é tirado para que nós possamos nos esbaldar.  

— Minha ingênua Isabel, sempre foi assim. E povo não pereceu. É a lei!

Mas a bela e bondosa rainha continuou seu trabalho de alimentar os mais necessitados. Sempre que podia e com ajuda de alguns empregados do castelo dava um jeito de estar com o povo alimentando-os.

Estes quando a viam se aproximar, choravam de alegria e lhes beijavam as mãos e os pés.

Isabel era, de fato, muito amada pelos súditos.

Um dia, já muito bravo com o comportamento da rainha, o rei resolveu seguir sua amada. E tão logo ela saíra do castelo o rei saiu sorrateiro atrás dela.

Isabel levava cestos e o avental repletos de pães, frutas e carnes

Em dado momento ele a alcançou e muito determinado lhe disse:

— Tantas vezes pedi, tantas outras ordenei e nada de me ouvires. Serei obrigado a mandar matar-te se estiveres em posse de alimentos do castelo. O que tens nos cestos e no avental? Vamos, dize já!

— Isabel, com receio de declarar que carregava alimentos tão aguardados pelo povo, pediu a Deus em uma breve prece e um olhar ao céu que a protegesse… Nesse instante saiu de sua boca…

— Meu senhor e rei, são flores.

Ao que o rei indagou

— Em pleno inverno? Onde ainda há flores em pleno inverno?

Ela, buscando as palavras disse.

— Certamente foram a últimas que tive a felicidade de encontrar e colher nos jardins ao redor do castelo, meu rei.

O rei não satisfeito quis ver e pediu que ela lhe mostrasse.

Ao que ela, sem hesitar, e não se importando com o que aquilo significaria, deixou cair o conteúdo do seu avental… e para surpresa de todos, inclusive da bela e bondosa rainha, caíram flores, as mais lindas e perfumadas já vistas naquele reino. E qual não foi a alegria, e o contentamento de Isabel e do seu rei.

Afinal o rei amava sua linda rainha. E de fato não desejava matá-la. O rei apenas não havia aprendido a compartilhar. Às vezes precisamos do exemplo que nos ensina.  

E foi aprendida a lição. Milagres acontecem sim! Quando acreditamos e fazemos o que é certo os milagres acontecem.

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Sobre Santa Isabel

Menina Isabel,

Rainha Isabel,

Isabel de Aragão, Rainha de Portugal,

Rainha Santa Isabel.

Reinou como rainha consorte de Don Dinis entre os anos de 1282 e 1325, em cujo castelo conheci na cidade murada de Óbidos em Portugal em 2022.

Foi beatificada em 1516 pelo Papa Leão X e canonizada em 1625 pelo Papa Urbano VIII e hoje é a padroeira da cidade de Coimbra. 

COMO SE FOSSE PÁSSARO

Por Leandro Bertoldo Silva

Texto inspirado em canções de Chico Buarque e da tela Acidente de Trabalho, de Sigaud.

O operário que todo dia fazia tudo sempre igual achou um destino diferente…

Francisco escolhera o branco para se parecer com os pássaros que via em voos tão de perto por cima daquele andaime pingente. Juntou parte de suas economias, meteu-se em uma camisa de cambraia branca e saiu daquela loja como se fosse a última. Andava pelas ruas sentindo-se livre. Todo ele era um sorriso de passarinhar. Sentia que seus braços eram asas e as penas dos dedos tocavam o firmamento. Lembrou-se da história da cidade iluminada a qual por tempos não recordava o nome, mas havia lido em uma revista aberta ao acaso na espera do barbeiro, e quis tocar o céu, fazer um buraquinho nele para deixar passar o facho de luz brilhante. Logo ele a passar dias e dias como se fosse náufrago das alturas ao estar tão perto e tão longe do que desejava. Desejava? Ele não sabia, apenas sentia (que é bem diferente) um leve desprendimento.

Andava como se fosse sábado por aquelas ruas de segunda-feira. Como um aluno travesso, só que adulto, matava o dia de trabalho sem se importar com as consequências. Só gargalhava como se ouvisse música, aquela do farfalhar do princípio de um sorriso flácido de quem nasceu para olhar. Só olhar. Mas agora ele deseja voar como seus amigos das alturas; os pássaros, naturalmente, porque os outros eram operários como ele, com as mesmas mãos grandes e pés enormes contrapondo-se com as cabeças pequenas sem pensação.

Nisso, passou por aquelas ruas poetizando o tráfego sem se dar conta para onde ia. Não carregava pastas, documentos, celular, caderneta, patuá, nada para o identificar ou que lhe fizesse lembrar o desarranjo do uniforme azul marinho da firma. Ao menor sinal de memória corria a distrair-se em olhar para a cambraia branca e novamente se passarinhava.

Desejou tomar sorvete e comer cachorro-quente sem implicar de melar os dedos e os cantos da boca. E daí? Era só limpar! Não entendia a recriminação de sua mãe em tempos meninos e depois de sua esposa sempre tão arbitrária em questões de prazer. Ela era capaz de dizer que não ficava bem a um homem pai de família abocanhar um pão no meio da rua. E assim era por tudo: pela risada mais alta que a gente tem que engolir, pelo grito de gol que a gente tem que encobrir, pela alegria fortuita de nunca sentir. Arree!

Mal começa o sol se pôr, ouve-se o badalar do relógio da matriz. “Os carros avançam os sinais na hora da Ave-Maria”, já dizia a canção plácida de um amigo. “Seria o momento de sair do trabalho” — pensa Francisco — no exato instante em que ouve, vindo do alto dos andaimes, os operários o chamarem, clamarem, gritarem por cuidado. Nem se dera conta de como foi parar ali em frente à construção. Certamente o costume a direcionar a alma distraída para a obrigação de todo dia. A partir daí tudo foi lento e rápido. Rápido para a multidão que se aglomerava e maravilhosamente lento para ele ao sair da noite infinita e retornar à quietude do quintal como numa roda-gigante. Tudo, absolutamente tudo rodou num instante. De repente uma freada. Uma buzina. Um baque. Olhos assustados. Gritos. Muitos olhos. Mais gritos. Rostos disformes. Mãos na cabeça. Nas bocas. Tempo. Paz. Quanto tempo? Não sabia. Quanta paz? Ela agora existia. A sexta badalada do relógio. Silêncio.

Olhou para o vermelho da sua cambraia — não era branco? — e sentiu-se flutuando naquele chão de dormir. Ouviu novamente o farfalhar de asas por cima de sua cabeça ao som longe da Ave-Maria que lá vem, que lá vem, que lá vem…

Lá estavam eles, os pássaros, a esperá-lo…

Apenas sorriu…

Agora…

Podia…

Voar.

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“Amou daquela vez como se fosse a última”. As músicas de Chico sempre me fizeram pensar. Pensar em acontecimentos, pensar em situações, pensar em histórias… Essa é uma delas, e juntamente com a tela de Sigaud nos conduz a um desprendimento perfeitamente possível à suavidade. Por que não? Para uma experiência ainda maior, ouça e depois deixe seus comentários, eles são muito importantes.

Forte abraço!

Até a próxima.