Aquilo que chamam “morrer” não é senão acabar de viver e o que chamam “nascer” é começar a morrer. E aquilo que chamam “viver” é morrer vivendo. Não esperamos pela morte: vivemos com ela perpetuamente. – Jean Baudrillard –
Ele havia lido em um livro de Mia Couto um diálogo que o impressionou bastante:
— Pai, a mãe morreu?
— Quatrocentas vezes.
— E ela está enterrada onde?
— Ora, em toda parte.*
Ficou imaginando como isso seria possível. Quatrocentas partes de sua mãe em quatrocentos lugares diferentes… Isso, além de impossível, era grotesco! Logo desviou seu pensamento para algo que lhe pareceu mais apropriado: se a lei do reencontro estivesse certa, estaria explicada a questão… Mas não acreditava nisso! Sua igreja não permitia, e era isso, para ele, muito mais cômodo, pois evitava mirar os espelhos de sua alma… Porém, nada disso teria importância se uma profunda sensação de sentir-se incompleto não persistisse em sua vida, como se os mesmos espelhos, estando a quebrar, lançassem seus cacos a refletir tempos escusos, o que lhe trouxe ainda mais angústia, pois, a partir daquele momento, pôs-se a procurar por ele mesmo…
* Antes de nascer o mundo – Mia Couto. _______________________
A Árvore das Letras é uma escola-ateliê e editora sustentável de encadernação e papelaria ecológica. Valorizamos a produção e a confecção de livros e cadernos conceituais e artesanais. Oferecemos vivências presenciais e on-line para quem quer ingressar e aprimorar no mundo da escrita e da arte da palavra.
Frequentemente participamos de eventos, feiras e exposições. Entre em contato conosco e conheça melhor os nossos trabalhos.
De dentro da minha caixa posso ver sementes pretas com vermelho. Ela é linda. Mora dentro de uma casinha que parece uma gestante. Ao lado dela, penso eu, tem outra semente. Mas essa é ainda mais diferente, num formato cilíndrico e meio transparente. Ao mesmo tempo, colorido, de um azul muito estranho. Parece que tem um líquido dentro. Será que semente tem isso?
Mais adiante, avisto algo refletindo a luz do sol. Aproxime-me e quando pego essa semente corta os dedos. Posso enxergar através dela. E ao cair da minha mão estrala no chão como se fosse quebrar. Quando caiu, parou ao lado de algo marrom e retangular. Que flor diferente deve ser essa? Pelo jeito, também tem algo dentro dela. Quando balanço, faz barulho de água. Estranho mesmo, é que dela sai alguma coisa comprida. Parece um graveto seco, mas é branco. Nunca vi graveto branco.
Resolvi mudar de calçada e encontrei uma folhagem. Meio verde, meio seca. Mas essa tem muita cara de planta. Tem um caule verdinho e cheiro de folha de árvore. Só que não demorou para encontrar outra folha esquisita. Grande, colorida por fora, prateada por dentro, muito estranha. Posso ver palavras escritas nessa folha, mas como pode a Mãe Natureza escrever uma palavra?
— Eva, anda logo, minha filha. Chega de catar lixo do chão!
Minha mãe me chamou e me tirou da minha caixa. Achei que era tudo coisa da minha cabeça, mas não! Isso tudo é um mundo real onde as pessoas jogam lixo no chão.
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* Kaká Bertoldo é escritora e uma das autoras da coletânea Histórias e Versos. É integrante da turma Manoel de Barros, da Vivência Novos Autores, da Árvore das Letras.
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Janelas sempre foram para mim possibilidade de liberdade e ponto de observação. Gosto de me colocar num lugar outro para olhar o mundo e as pessoas.
Quanta novidade se pode aprender quando você deixa seus olhos dormitando na caixinha dos segredos, procurando ver as pessoas com um olhar de entendimento, numa troca de (in)segurança e até de humildade. No átimo de troca, você descobre que não é melhor do que ninguém e a gratidão invade todo o seu ser.
As janelas fecham-se e abrem-se na objetividade a que foram constituídas. Diz o adágio popular: “quando uma janela se fecha, outras se abrem”.
É preciso abrir janelas, muitas delas! A vida oferece muito mais aos que aprendem a sair de si mesmos e se arriscam na direção dos outros, numa mão única de desejos e concretude.
Abrir as janelas é, também, expandir fronteiras, aprender novas vivências, degustar outros sabores e vencer os obstáculos. E debruçada nas janelas da vida, permaneço sobrevoando, desejando um dia ser e muito ver.
A vida sempre me ensinou como eu poderia ser forte, mas exigiu de mim atitudes mais potentes em momentos onde acreditei que só existia fraqueza no meu viver. Com o tempo aprendi a escutar o que o meu silêncio tinha o que me dizer — certifiquei-me que ele diz muita coisa. Aprendi a reconhecer o que é de verdade, principalmente os sentimentos. Aprendi também a fazer as pazes com o que não foi necessariamente uma perda. E o mais magnifico: que viver é um ciclo eterno de recomeços e que a melhor universidade é a felicidade de viver.
Assim, vou abrindo janelas, recolhendo conhecimentos e alegria de viver de forma solidária, coesa e cônscia dos que têm certeza do que querem e precisam para recolher momentos indeléveis e mágicos na grande vereda chamada vida.
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* Elisa Augusta de Andrade Farina é escritora, presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni e integrante da turma Manoel de Barros, da Vivência Novos Autores, Árvore das Letras
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Estava a sentir uma enorme falta de mim. A última vez que estive comigo foi pelos idos dos anos 80 quando passeava tanto entre os mundos quanto entre as árvores e flores e frutos e sonhos.
Uma vez, no aniversário de 10 anos da minha filha, disse: “Quando todos colocaram as suas máscaras, resolvi tirar a minha”. Era uma festa a fantasia e naquela ocasião eu era o Visconde. Bem, eu não sou o Visconde, mas também nunca deixei de ser. Era a pura essência da magia, a mesma magia a conduzir-me pelas histórias e pelas palavras nesta existência.
Os anos passaram e aí sim eu me fantasiei. Fui técnico, professor, “homem sério”… Disfarcei-me daquilo exigido pelo mundo: ter um emprego, um diploma, uma ocupação. Mas eu tinha ocupação! Sentia o perfume das rosas com a mesma destreza de um médico ao sentir o coração de uma pessoa. Era capaz de ouvir o bater de asas de um passarinho como o mecânico a descobrir o ruído de um motor. Fazia das pedras e das folhas animais alados como os engenheiros, os arquitetos e os operários a dar forma às construções. O meu mundo se fazia pleno de sabores deliciosamente incertos.
E quando a alegoria se esfacela? E quando o tempo rompe as fibras do papel representado? Ah! Nessas horas desmancham-se os figurinos, apagam-se as luzes, finda-se o espetáculo e a vida recomeça.
Tudo se refaz quando a alegoria se esfacela.
É hora de voltar.
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Essa pequena história é o início de um recomeço, em que o tempo se encarregará de mostrar…
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A natureza é um manancial de recursos para a vida. Ao nos aproximarmos dela cometemos um imenso paradoxo, porque nos aproximamos do que nunca deveríamos ter nos afastado.
A modernidade é algo maravilhoso pelas suas facilidades. Mas a vida é um ciclo e muitas vezes o ultrapassado de antes passa a ser visto como o moderno de hoje.
Seja como for, na saúde, na alimentação, nas utilidades do dia a dia, nas construções e uma infinidade de necessidades humanas, a natureza está ao alcance das nossas mãos como um presente eterno para quem se permite saber usá-la.
A propósito, nós somos natureza e por isso deveríamos nos respeitar um pouco mais, sermos mais colaboradores em um estado de comunhão perfeita, em que os recursos de um sirvam às necessidades do outro e vice versa sem excessos. Tudo tem um tempo e um saber, um momento perfeito de uso e entrega.
Em meu trabalho de encadernador busco essa reaproximação com a natureza, seja a partir dos processos, seja a partir das matérias-primas ao perceber onde e como determinado material pode ser utilizado sem agredir o ciclo da vida ou, pelo menos, agredir o menos possível.
Já como escritor, sou um contador de histórias e pretendo, ao unir esses dois ofícios, escrever novas páginas a partir dos ensinamentos passados e resgatar legados que já moram dentro de nós.
A própria história da encadernação nos mostra como isso é possível. Ela é um exemplo literalmente vivo de como vários recursos estão disponíveis aos olhos de um observador mais cuidadoso.
Não por acaso, a primeira forma de papel conhecida é o papiro, uma espécie de planta que crescia nos pântanos do delta do Nilo no antigo Egito. O caule era retirado com bastante cuidado em forma de tiras, que eram estendidas em camadas sobrepostas. Pressionadas, formavam-se folhas e as mesmas eram polidas com pedras ou conchas e podiam ser enroladas. A escrita se fazia em apenas uma face da folha.
O mesmo acontecia com folhas de palmeiras do Tibete. Escribas budistas escreviam nessas folhas, que eram secadas e cortadas em tiras. A inscrição era feita com uma espécie de estilete. As folhas eram perfuradas, unidas com fios e acondicionadas em pranchas de madeira.
Muito se evoluiu. Dos papéis enrolados, chamados de volumen, chegamos ao códice com páginas individuais ligadas em apenas um lado, nascendo, assim, a lombada e consequentemente os primeiros livros e cadernos tais quais os conhecemos até hoje.
As capas eram variadas. Podiam ser pranchas simples ou tecidos decorados. O melhor disso tudo, é admitir que algo criado há milênios de anos, pode hoje ser altamente moderno.
E foi justamente na busca dessa inspiração, principalmente da casca da palmeira, que usei para a criação de algumas capas de cadernos copta. As cascas se desprendem da árvore naturalmente e ao caírem ainda verdes são recolhidas, moldadas, cortadas e postas para secar em prensas. Somente depois elas são trabalhadas formando um resultado extremamente elegante de aspecto rústico e inovador. Passado e presente juntos novamente.
Este é o prazer maior do trabalho de encadernação: saber que as possibilidades são infinitas e os recursos estão tão próximos de nós como sempre estiveram desde séculos passados.
Caso você se interesse pelos nossos cadernos, por esse conceito de história, sustentabilidade e profundo respeito com a natureza com o qual os confeccionamos, ficaremos felizes por isso e mais ainda em poder atender aos seus desejos.
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Deixe-me contar um pouco mais!
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Oculto do mundo Entre letras me revelo Em meu submundo Escuro e profundo.
Entre letras revelo insânias paixões Sentimentos severos.
Entre letras Revelo imundas palavras Sentidas na alma Acalentadas no silêncio.
Entre letras Revelo amor não correspondido Petrificado no coração Sem ação.
Entre letras Revelo a coragem moribunda Assombrada no tempo.
Entre letras Estão as dores E as cicatrizes germinadas no tempo Acolhe quem as saiba ler.
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Nasapulo Kapiãla é angolano, colaborador e integrante da turma Paulina Chiziane da Vivência Novos Autores, da Árvore das Letras.
A Quarta Literária é uma ação da árvore das Letras de fomento à literatura independente.
Você também pode ser um correspondente literário. Participe da Vivência Novos Autores, um encontro on-line semanal de leitura e produção literária. Saiba mais AQUI.
Para responder essa pergunta talvez devemos examinar a grande literatura do mundo e nos fazer uma outra pergunta: “quem realmente fez os livros”? Isso porque autores não escrevem livros; eles escrevem textos. Bem, nem todos…
Imagine um autor que, além de escrever os seus textos, também faz os seus próprios livros, cuidando de toda cadeia produtiva. Os textos, depois de escritos, são moldados, reescritos, revisados, transformados pela edição, designer e ilustração. O autor, ele mesmo, escolhe o formato, o papel, faz a impressão e a encadernação, gerando-os ao ritmo de cada palavra ao fazê-los nascer um a um a cada costura, a cada corte e dobra de papel.
Como se não bastasse, esse mesmo autor-artesão, juntamente com sua esposa Geane Matos – https://www.instagram.com/geane_matos_huzie/ – confecciona cadernos artesanais dos mais variados por onde as histórias surgem em uma verdadeira alquimia de criatividade.
Assim passaram a existir os meus cinco livros que podem ser encontrados aqui mesmo neste site: “Janelas da Alma”, “Entrelinhas contos mínimos”, “Relicário pessoal”, “Histórias de um certo Aarão e outros casos contados” e “O menino que aprendeu a imaginar”, além de obras de outros autores que passaram a entender, eles também, o valor desse trabalho, assim como as coletâneas frutos das Vivências de leitura e escrita realizadas na Árvore das Letras. Isso por si já é uma grande alegria, mas prepará-los para enviá-los aos leitores, que também são um elemento essencial no processo, talvez o mais importante de todos, é algo extraordinário.
Inclusive, um dos momentos mais prazerosos é quando eu escrevo cartas para serem enviadas junto aos livros para os leitores como forma de valorização do que é feito à mão, demonstrando acima de tudo o lado humano, do contato real pelas palavras escritas para cada pessoa com o tempo necessário para esse ato de carinho.
Tudo isso junto é que define um escritor artífice, aquele que além de escrever faz existir os suportes de suas ideias e os livros tão sonhados. É nesse lugar que eu me encontro. Se você já conhece sabe do que estou falando. Se ainda não, venha conhecer a arte do livro e dos cadernos artesanais, as texturas, os cuidados extremos com cada detalhe, que faz dessas mesmas artes não só um produto ou objeto a ser vendido, mas uma experiência. Experiência! Como precisamos disso…
Gostava de andar nos trilhos do trem para sentir a vida passar. Ficava horas a se equilibrar na linha de braços abertos, esquecido de si. Cada passo era uma eternidade esvaindo-se de lembranças, memórias das árvores que surgiam a todo instante. Fazia-se parente do futuro e de outras gentes e pássaros e casas a se dissolverem e a se formarem continuamente. Não queria chegar a nenhum lugar, desejava apenas ir, sentir no vento a carícia dos séculos a passar, a passar, a passar…
Sonhos viajam Pelas linhas do tempo. Para onde vamos?
Quem sabe? Até onde o trem parar.
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Para mim que sempre gostei do trem como símbolo de força, de perseverança, de união e conquista, e também como uma verdadeira “máquina do tempo”, essa foto representou muito e me fez pensar em minhas escolhas pela vida… Você se sente satisfeito com quem era e com quem se tornou?
— Alô, amor! Acabei de chegar na rodoviária de Belo Horizonte.
— Que bom! A viagem foi tranquila?
— Sim, muito frio no ônibus, mas foi tudo bem.
— Oi, pai!!
— Oi, filha, tudo bem?
—Tudo. Aonde o senhor vai hoje?
— Não sei. Estou sem lenço, mas com documento. Vou andar por aí…
Assim começou minha peregrinação de um dia na cidade onde nasci. Havia chegado às 9h20 da manhã de Pompéia, em São Paulo, onde moram os meus pais, irmã e alguns outros membros da família. Pegaria outro ônibus apenas às 19h para minha cidade atual, em Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha. Assim, a ocasião presenteava-me com um passeio turístico pelas ruas da capital mineira.
Era curiosa a sensação de andar pelas ruas já conhecidas como se fosse pela primeira vez. Mais curioso era o fato de diferente de 14 anos atrás, andar sem pressa, sem compromisso, algumas poucas coisas no bolso, como um bloco de notas e mãos vazias para seguir vivendo. Era bem diferente também daquele mar de gente que um dia eu fiz parte, a correr, trombar e até xingar.
Havia acomodado minha bagagem nada pequena no porta-volumes da rodoviária para andar livre ou mesmo voar como um passarinho, uma vez que as memórias criavam asas a cada esquina.
Parei no Café Nice para um lanche matinal. Já não sabia se fazia primeiro o pedido ou se pagava. O atendente, filho ou neto do dono daquele lugar, já um senhor no caixa, conversava com um amigo sobre um exame de próstata indiferente da minha dúvida. A propósito, indiferença parecia ser a tônica não só daquele lugar, mas da cidade. Havia uma atmosfera de individualismo. Mas essa era também do meu tempo.
Fui atendido, afinal, com duas fichas provavelmente as mesmas desde 1939. Tomei um café sem açúcar, agradeci e saí para a rua. Uma moça toda de preto apagava um cigarro em um poste. Olhou para mim como se eu não existisse. Ela também parecia não existir. Andei até o sinal em frente à Igreja São José.
“É melhor perder um minuto da vida do que a vida num minuto!”
Foi o que ouvi há muitos anos de uma senhora quando, ainda criança, fui atravessar correndo aquela mesma rua, naquele mesmo sinal, porém vermelho para os pedestres. Ela me segurou e proferiu essas palavras nunca mais saídas da minha cabeça. Fora um anjo a me salvar.
Resolvi atravessar a rua, agora com segurança, e entrar na Igreja para uma oração. Aproveitei e agradeci à senhora — que provavelmente não mais vivia — com um Pai Nosso e uma Ave Maria.
Segui pela Avenida Afonso Pena em direção ao Palácio das Artes. Um rapaz solava ao violão uma música de Raul Seixas. Show sem plateia. Ninguém dava atenção à belíssima execução. Um casal passou fazendo cooper. Uma mulher levou à boca uma mão cheia de pipocas, enquanto um pai fez poesia sem saber ao descer o filho do colo ávido para ir ao chão e disse: “vá, meu filho, vá ser livre.” E o menino corria desequilibrado, mas feliz. O que estaria reservado àquela criatura? Um dia eu também corri…
Cabelos, roupas, estilos todos diferentes. Carros, buzinas, o som da cidade, um pluriverso de tendências misturadas às lembranças já não mais perturbadoras, mas agradecidas. O que antes era sombrio mostrava-se claro e sereno. O mar nunca existente por aquelas terras com suas ondas rebeldes transformara-se em uma calma lagoa, como a dos barcos no Parque Municipal. Era onde eu já me encontrava depois de brincar com outras lembranças. O lugar já palco de tantos sentimentos controversos, de tantas pessoas e de tantos motivos, para mim era apreciação. Andava indiferente à dor. “Não é aquilo que você olha que importa, mas o que você vê”, diria Thoreau.
Continuei minha caminhada aleatória e como que por um costume já involuntário subi Bahia sem descer Floresta. Lá estava a viver outras épocas em companhia de Drummond, Oswald e Tarsila em lembranças emprestadas, só vistas nos livros, mas curiosamente familiares. Encontrava-me no lendário Edifício Maleta, local de boemia intelectual e ainda hoje um espaço cultural cheio de histórias a acontecer a todo instante. Como essa quando, ao subir a escada rolante há anos sem funcionar, me dirigi aos famosos sebos. Em meio a tantos, meus olhos se deparam quase instantaneamente com Lya Luft e sua “Múltipla escolha” a uma bagatela de R$5,00. Ao abrir o livro, lá estava escrito na orelha:
“A vida é um cenário com um palco e com muitas portas, e diversas maneiras de encarar esse jogo: como um trajeto, um náufrago, um poço, uma montanha. Somos, em parte, resultado das nossas próprias decisões” (…)
Não por acaso eu estava ali e não por acaso o livro também estava ali, exatamente naquele sebo, onde eu encontro um senhor sentado ao lado da gôndola, o domo do sebo. Aproximo-me:
— Lembra-se de mim?
Ele me olhou e sem pestanejar proferiu:
— Você é escritor. Esteve aqui há alguns anos – 5 mais precisamente -, deixou comigo dois dos seus livros. Eu vendi eles.
Era o Seu Demerval e tudo aconteceu exatamente como descreveu. Fiquei emocionado e pedi a ele para registrarmos uma foto que sua neta prontamente providenciou. Boas surpresas da vida.
Despedi-me do Seu Demerval e sua neta e segui caminho. Já encontrava-me na Praça da Liberdade, mas não sem antes massagear algumas lembranças – sempre elas -, como o primeiro selinho “despretensioso” da mulher que eu amo e hoje minha esposa, logo na esquina da rua; a agência bancária que anos mais tarde eu compraria e venderia nossa primeira casa quando nos casamos e tantos outros acontecimentos importantes e outros ainda sem importância nenhuma, mas que grudam em nossa alma.
Antes mesmo de adentrar a praça, uma visita surpresa a um amigo, o maior livreiro que Belo Horizonte tem a honra de possuir: Paulo Fernandes. Chego à livraria e lá está ele em seu posto atrás do balcão rodeado por tantos autores e autoras, todos eles cúmplices de sua esmerada e sensível capacidade de falar dos livros.
— Estou à procura de um livreiro.
Foi o que disse e ver como resposta o mais belo sorriso e brilho nos olhos de quem é um amigo de verdade. Paulo me deu um abraço daqueles de quebrar urso, abraço de quem é abraçado todos os dias por Cervantes, Shakespeare, Pessoa, Guimarães, Conceição Evaristo. São muitos braços em apenas dois que me amparam em seu peito. Sinto-me em aconchego na alegria de um amigo. Breves e rápidas palavras, histórias contadas em curto espaço de tempo, mas suficientes para encherem nossos corações.
Antes de sair, um presente: sem titubear, lançou mão de um livro de uma das muitas pilhas expostas. Tratava-se de “O vício dos livros”, de Afonso Cruz.
— Toma. É pra você, de aniversário. É um livro pra gente como você, eu, o Farelo e tantos que gostam de ler. Você vai amar esse livro.
Amei, mas amei ainda mais aquele gesto de alguém que me presenteou com a sua amizade.
Estava na hora de ir embora, voltar para a rodoviária, seguir meu caminho. Antes, dei uma volta pela praça. Estava a acontecer algumas apresentações culturais. Olhei as flores a fazerem parte de um livro meu e também os bancos e as árvores. Apreciei a arquitetura daquele lugar e pensei como passado e presente se fundiam e se aninhavam tão devagarinho em mim. Estava a me sentir quase completo com aquela visita. Mas faltava uma coisa muito importante. Dirigi-me à Biblioteca Municipal, onde hoje conversam divertidamente e eternamente alguns dos meus outros grandes melhores amigos: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, vistos de perto por Murilo Rubião. Sentei-me ao lado deles e ali tive uma boa conversa, em especial com Fernando, uma vez que me sentia como Eduardo Marciano naquele tour pelas ruas da cidade e naquele que se apresentou como um belo encontro marcado. Agradeci e pedi à bênção a todos eles por tudo que fizeram às nossas letras e principalmente a mim com suas inspirações. Agora sim, estava na hora de ir.
Fui em direção de volta à rodoviária. Meus pensamentos saltavam de um lado a outro, mas estava leve com uma profunda e curiosa sensação de vitória. Lembrei-me das vivências boas e nem tão boas que presenciei naquela cidade. Lembrei-me da correria, dos ônibus lotados, do trânsito caótico no horário do rush, dos atrasos e das incontáveis vezes preso ao volante. Mas lembrei-me dos encontros com os amigos, dos teatros e cinemas, das conversas nos bares. Lembrei-me de tudo. Mas estava na hora de deixar tudo aquilo para trás, todas aquelas lembranças, não as memórias, essas permanecem. Porque estou feliz com a minha vida atual de interiorano, de morador do Vale do Jequitinhonha, dos amigos do Mucuri, da Academia de Letras, dos alunos e ex-alunos, das amigas e amigos queridos. Eu venci. Venci a incapacidade de me adaptar, de aceitar que a vida é um ciclo de oportunidades, que devemos fazer florescer o jardim onde estamos. Sempre há algo a ser feito. E a vida sempre continua. Nada é por acaso.
Termino essa pequena historia de um dia com a fala de Xavier de Novais, um personagem de um livro meu. Agora eu o entendo mais ainda…
“Seja como for, andava como se aquela cidade já não me pertencesse. Aliás, eu não pertencia a ela, que ficou no passado. A partir daquele momento, eu apenas contaria histórias…”
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Bem, espero que tenha gostado de ler esses breves acontecimentos de um dia da mesma forma que eu gostei de tê-los escrito. São nossas memórias que nos fazem existir e ter histórias para contar. Mas é em frente que seguimos. A vida é uma página em branco cheia de possibilidades…
Moacyr Scliar, um escritor gaúcho que admiro muito, tem um conto intitulado “Pausa”.
Embora a narrativa se desenvolva em atmosfera bem diferente da que me encontro — e aqui deixo para vocês a indicação dessa leitura maravilhosa e muito, mas muito reflexiva — inspiro-me na “pausa” de Scliar para dizer a vocês que estarei me proporcionando um pequeno descanso necessário neste mês de julho, inclusive nas Crônicas de Domingo e nas Quartas Literárias.
Estarei de volta a partir de agosto que está logo ali, na esticadinha de um dedo…
Agradeço e espero a compreensão, desejo um forte abraço a todos e até logo mais com muitas histórias para ler, escrever e contar.