
Por Leandro Bertoldo Silva
— Alô, amor! Acabei de chegar na rodoviária de Belo Horizonte.
— Que bom! A viagem foi tranquila?
— Sim, muito frio no ônibus, mas foi tudo bem.
— Oi, pai!!
— Oi, filha, tudo bem?
—Tudo. Aonde o senhor vai hoje?
— Não sei. Estou sem lenço, mas com documento. Vou andar por aí…
Assim começou minha peregrinação de um dia na cidade onde nasci. Havia chegado às 9h20 da manhã de Pompéia, em São Paulo, onde moram os meus pais, irmã e alguns outros membros da família. Pegaria outro ônibus apenas às 19h para minha cidade atual, em Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha. Assim, a ocasião presenteava-me com um passeio turístico pelas ruas da capital mineira.
Era curiosa a sensação de andar pelas ruas já conhecidas como se fosse pela primeira vez. Mais curioso era o fato de diferente de 14 anos atrás, andar sem pressa, sem compromisso, algumas poucas coisas no bolso, como um bloco de notas e mãos vazias para seguir vivendo. Era bem diferente também daquele mar de gente que um dia eu fiz parte, a correr, trombar e até xingar.
Havia acomodado minha bagagem nada pequena no porta-volumes da rodoviária para andar livre ou mesmo voar como um passarinho, uma vez que as memórias criavam asas a cada esquina.
Parei no Café Nice para um lanche matinal. Já não sabia se fazia primeiro o pedido ou se pagava. O atendente, filho ou neto do dono daquele lugar, já um senhor no caixa, conversava com um amigo sobre um exame de próstata indiferente da minha dúvida. A propósito, indiferença parecia ser a tônica não só daquele lugar, mas da cidade. Havia uma atmosfera de individualismo. Mas essa era também do meu tempo.
Fui atendido, afinal, com duas fichas provavelmente as mesmas desde 1939. Tomei um café sem açúcar, agradeci e saí para a rua. Uma moça toda de preto apagava um cigarro em um poste. Olhou para mim como se eu não existisse. Ela também parecia não existir. Andei até o sinal em frente à Igreja São José.
“É melhor perder um minuto da vida do que a vida num minuto!”
Foi o que ouvi há muitos anos de uma senhora quando, ainda criança, fui atravessar correndo aquela mesma rua, naquele mesmo sinal, porém vermelho para os pedestres. Ela me segurou e proferiu essas palavras nunca mais saídas da minha cabeça. Fora um anjo a me salvar.
Resolvi atravessar a rua, agora com segurança, e entrar na Igreja para uma oração. Aproveitei e agradeci à senhora — que provavelmente não mais vivia — com um Pai Nosso e uma Ave Maria.
Segui pela Avenida Afonso Pena em direção ao Palácio das Artes. Um rapaz solava ao violão uma música de Raul Seixas. Show sem plateia. Ninguém dava atenção à belíssima execução. Um casal passou fazendo cooper. Uma mulher levou à boca uma mão cheia de pipocas, enquanto um pai fez poesia sem saber ao descer o filho do colo ávido para ir ao chão e disse: “vá, meu filho, vá ser livre.” E o menino corria desequilibrado, mas feliz. O que estaria reservado àquela criatura? Um dia eu também corri…
Cabelos, roupas, estilos todos diferentes. Carros, buzinas, o som da cidade, um pluriverso de tendências misturadas às lembranças já não mais perturbadoras, mas agradecidas. O que antes era sombrio mostrava-se claro e sereno. O mar nunca existente por aquelas terras com suas ondas rebeldes transformara-se em uma calma lagoa, como a dos barcos no Parque Municipal. Era onde eu já me encontrava depois de brincar com outras lembranças. O lugar já palco de tantos sentimentos controversos, de tantas pessoas e de tantos motivos, para mim era apreciação. Andava indiferente à dor. “Não é aquilo que você olha que importa, mas o que você vê”, diria Thoreau.
Continuei minha caminhada aleatória e como que por um costume já involuntário subi Bahia sem descer Floresta. Lá estava a viver outras épocas em companhia de Drummond, Oswald e Tarsila em lembranças emprestadas, só vistas nos livros, mas curiosamente familiares. Encontrava-me no lendário Edifício Maleta, local de boemia intelectual e ainda hoje um espaço cultural cheio de histórias a acontecer a todo instante. Como essa quando, ao subir a escada rolante há anos sem funcionar, me dirigi aos famosos sebos. Em meio a tantos, meus olhos se deparam quase instantaneamente com Lya Luft e sua “Múltipla escolha” a uma bagatela de R$5,00. Ao abrir o livro, lá estava escrito na orelha:
“A vida é um cenário com um palco e com muitas portas, e diversas maneiras de encarar esse jogo: como um trajeto, um náufrago, um poço, uma montanha. Somos, em parte, resultado das nossas próprias decisões” (…)
Não por acaso eu estava ali e não por acaso o livro também estava ali, exatamente naquele sebo, onde eu encontro um senhor sentado ao lado da gôndola, o domo do sebo. Aproximo-me:
— Lembra-se de mim?
Ele me olhou e sem pestanejar proferiu:
— Você é escritor. Esteve aqui há alguns anos – 5 mais precisamente -, deixou comigo dois dos seus livros. Eu vendi eles.
Era o Seu Demerval e tudo aconteceu exatamente como descreveu. Fiquei emocionado e pedi a ele para registrarmos uma foto que sua neta prontamente providenciou. Boas surpresas da vida.
Despedi-me do Seu Demerval e sua neta e segui caminho. Já encontrava-me na Praça da Liberdade, mas não sem antes massagear algumas lembranças – sempre elas -, como o primeiro selinho “despretensioso” da mulher que eu amo e hoje minha esposa, logo na esquina da rua; a agência bancária que anos mais tarde eu compraria e venderia nossa primeira casa quando nos casamos e tantos outros acontecimentos importantes e outros ainda sem importância nenhuma, mas que grudam em nossa alma.
Antes mesmo de adentrar a praça, uma visita surpresa a um amigo, o maior livreiro que Belo Horizonte tem a honra de possuir: Paulo Fernandes. Chego à livraria e lá está ele em seu posto atrás do balcão rodeado por tantos autores e autoras, todos eles cúmplices de sua esmerada e sensível capacidade de falar dos livros.
— Estou à procura de um livreiro.
Foi o que disse e ver como resposta o mais belo sorriso e brilho nos olhos de quem é um amigo de verdade. Paulo me deu um abraço daqueles de quebrar urso, abraço de quem é abraçado todos os dias por Cervantes, Shakespeare, Pessoa, Guimarães, Conceição Evaristo. São muitos braços em apenas dois que me amparam em seu peito. Sinto-me em aconchego na alegria de um amigo. Breves e rápidas palavras, histórias contadas em curto espaço de tempo, mas suficientes para encherem nossos corações.
Antes de sair, um presente: sem titubear, lançou mão de um livro de uma das muitas pilhas expostas. Tratava-se de “O vício dos livros”, de Afonso Cruz.
— Toma. É pra você, de aniversário. É um livro pra gente como você, eu, o Farelo e tantos que gostam de ler. Você vai amar esse livro.
Amei, mas amei ainda mais aquele gesto de alguém que me presenteou com a sua amizade.
Estava na hora de ir embora, voltar para a rodoviária, seguir meu caminho. Antes, dei uma volta pela praça. Estava a acontecer algumas apresentações culturais. Olhei as flores a fazerem parte de um livro meu e também os bancos e as árvores. Apreciei a arquitetura daquele lugar e pensei como passado e presente se fundiam e se aninhavam tão devagarinho em mim. Estava a me sentir quase completo com aquela visita. Mas faltava uma coisa muito importante. Dirigi-me à Biblioteca Municipal, onde hoje conversam divertidamente e eternamente alguns dos meus outros grandes melhores amigos: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, vistos de perto por Murilo Rubião. Sentei-me ao lado deles e ali tive uma boa conversa, em especial com Fernando, uma vez que me sentia como Eduardo Marciano naquele tour pelas ruas da cidade e naquele que se apresentou como um belo encontro marcado. Agradeci e pedi à bênção a todos eles por tudo que fizeram às nossas letras e principalmente a mim com suas inspirações. Agora sim, estava na hora de ir.
Fui em direção de volta à rodoviária. Meus pensamentos saltavam de um lado a outro, mas estava leve com uma profunda e curiosa sensação de vitória. Lembrei-me das vivências boas e nem tão boas que presenciei naquela cidade. Lembrei-me da correria, dos ônibus lotados, do trânsito caótico no horário do rush, dos atrasos e das incontáveis vezes preso ao volante. Mas lembrei-me dos encontros com os amigos, dos teatros e cinemas, das conversas nos bares. Lembrei-me de tudo. Mas estava na hora de deixar tudo aquilo para trás, todas aquelas lembranças, não as memórias, essas permanecem. Porque estou feliz com a minha vida atual de interiorano, de morador do Vale do Jequitinhonha, dos amigos do Mucuri, da Academia de Letras, dos alunos e ex-alunos, das amigas e amigos queridos. Eu venci. Venci a incapacidade de me adaptar, de aceitar que a vida é um ciclo de oportunidades, que devemos fazer florescer o jardim onde estamos. Sempre há algo a ser feito. E a vida sempre continua. Nada é por acaso.
Termino essa pequena historia de um dia com a fala de Xavier de Novais, um personagem de um livro meu. Agora eu o entendo mais ainda…
“Seja como for, andava como se aquela cidade já não me pertencesse. Aliás, eu não pertencia a ela, que ficou no passado. A partir daquele momento, eu apenas contaria histórias…”
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Bem, espero que tenha gostado de ler esses breves acontecimentos de um dia da mesma forma que eu gostei de tê-los escrito. São nossas memórias que nos fazem existir e ter histórias para contar. Mas é em frente que seguimos. A vida é uma página em branco cheia de possibilidades…
Um forte abraço e até a próxima.
Descubra mais sobre Por uma literatura de identidade própria - Escrever é costurar ideias com as mãos
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Meu amigo irmão de alma e coração,lendo seu texto no dia que você completa um ciclo e começa outro de vida , peço a Deus que abençoe sua caminhada sempre mais com lindas histórias para viver e contar e a gente se encontre muito para abraçar,jogar botão e conversa fora e outras músicas juntos criar e cantar.
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Obrigado, meu amigo, meu irmão! Que assim seja e certamente será 🙂
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Já havia lido anteriormente este belo texto, mas somente agora com a atenção devida. Que belo relato, e deixou-me uma pontinha de esperança, das mudanças que ainda hei de realizar. Um forte abraço
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Obrigado, Juliano. Fico muito feliz por sua leitura e desejo sucesso em suas realizações.
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