Por Angelo Campos
Cumprindo a inexorável jornada, cada dia deve ser brindado em sua inigualável e irrepetível fluidez, sendo o tempo o mestre implacável. Entre curvas e surpresas desses trilhos iluminados, um ano se cumpre em sintonia ao descortinar de horizontes outros.
Nessa jornada, ficaram pra trás: uma parte do esôfago, a vesícula, o apêndice, uma sutura no diafragma, um osso trincado, um dente, uma úlcera e uma hérnia. Em uma dessas ocasiões, quase fui … (ok, vocês acertaram, foi o dente).
A vesícula o médico me deu de presente. Guardei na geladeira durante um tempo, mostrava aos amigos e visitantes, para que me conhecessem por inteiro. Um dia minha filha disse pra parar com isso, soava meio sinistro. Retruquei, afinal poucos têm a oportunidade de se apresentar estando assim, em pedaços, fora de si. Outro dia, porém, alguém carregou a geladeira pra longe e essa parte de mim foi junto. Guardei o luto, sem saber do enterro. De outra sorte, posso ter sido descartado por desconhecimento, inutilidade, ou mesmo cozinhado como iguaria, vai saber… a bem da verdade, nunca me senti frito.
O apêndice, ao contrário, dei de presente para a médica que o retirou, era algo estranho e incomum, mesmo para um apêndice. Está aí, em algum laboratório, talvez um dia me encontrem. Se acontecer, sintam-se cumprimentados, “prazer, sou Angelo”.
Nasci nesse sagrado dia 02 de novembro. Foi há muito tempo, nem percebi, afinal, estive inconsciente naquele momento, era quase um natimorto, no sétimo mês de gestação e o cordão umbilical enrolado no pescoço. Nada demais, acontece com frequência, sabe, mas confere uma aura de estranheza, por ser dia dos finados e já estar, como dizer, chegando pronto pra partir.
Naquele tempo (como disse, foi há muito tempo), as pessoas visitavam com mais frequência seus entes queridos. Lembro-me da movimentação nos dias precedentes, do cuidado com as palavras, do silêncio respeitoso, da limpeza das ruas, da renovação da sinalização, pra que ninguém errasse o caminho de casa, digo, do cemitério. Limpava-se os túmulos e depositava-se flores, o ar ficava carregado de perfume. Uma floricultura era montada perto de casa e a maior parte dessas décadas todas (foram muitas, eu disse?) morei próximo a um cemitério, cujo nome era Da Saudade. Bastava dar um passo para, literalmente, enfiar o pé na cova. Era mais fácil passar o aniversário lá, não havia bolo, porém velas sim, inúmeras. Em criança, tive o prazer de conviver com muitos, estando vivos ou mortos. Atualmente está mais difícil diferenciar uns dos outros, mas a presença dos últimos me é agradável, sou bastante seletivo.
Quando viajo por aí, a trabalho ou a passeio, os amigos fazem questão de indicar os melhores cemitérios. Não que conheçam de fato, claro, procuram dicas na internet, é um carinho de outro mundo que têm por mim. Desse modo, cultivo o prazer de frequentar a ilustre morada de pessoas as mais admiráveis, gente fina, aliás finíssima (não citarei aqui, pois a lista é longa, e daqui a pouco irei visitá-los). A conversa, a rigor, ressoa epitáfios.
Senti de compartilhar com vocês esse alento que me anima. Visitem os mortos, passem um tempo com eles, conversem de igual pra igual, um dia passaremos todos pra lá e não será nada legal chegar como um estranho, dando uma de desentendido. Pra mim é super de boas, estou indo por partes, as afinidades aumentaram, tive a sorte de viver o limiar. Mas vocês não! Vocês irão por inteiro, então é bom cuidar e evitar surpresas na última hora.
A senha é a seguinte: procure primeiro o morto que você é, encontre seu próprio túmulo. Limpe-o, ofereça flores, dignifique o trato com as palavras, respire ares perfumados, deixe a luz entrar, pois é o “dia” e não a “noite” dos mortos. Junte seus pedaços, contemple aquele sorriso, beba e coma o que te faz bem, cante sua melhor canção, celebre-se. Bem entendido, a tampa do seu caixão está aberta e tem gente querendo te ver bem, não é hora pra ficar dormindo. Faça isso corriqueiras vezes. Um dia, por derradeiro, você estará pronto e seu túmulo, finalmente, vazio.
Meus amigos queridos, de aquém e além, muito obrigado pela companhia. Sintam-se abraçados para sempre.
P.S.: tudo que se diz aí é verdade, exceto aquela coisa do dente.
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Angelo Campos é jardineiro. Nas horas vagas dedica-se a coisas de menor relevância tais como Filosofia, Psicanálise e Transdisciplinaridade.
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Simplesmente sensacional! Quanta verdade está aí querido amigo Ângelo! E que honra fazer parte dessa amizade entre vcs, Ângelo e Leandro! Forte abraço! Que possamos ressuscitar da morte os nossos dias de simples sobrevivência, para vivermos a vida vivida, plenamente!!!
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