EU E O ESPELHO

Por Luzia Maria de Souza

Quem sou eu? Quem é o espelho?

Mara é uma mulher em seus 60 anos. Vive uma vida de trabalho, de lutas e muita desesperança. Mas todos os dias, sem que ela se desse conta, era convidada a mudar sua rotina, sem sucesso nem mesmo entendimento.

Após sua dura jornada diária, Mara se preparava para dormir, mal fechou os olhos ouviu uma voz vinda bem de trás dela. Vinha do espelho na porta do guarda-roupas…

— Psiu!!! – Disse o “espelho”.  

— Oi! Quem é você? – disse Mara.

— Ora bolas! Não me reconhece? Afinal, faz tanto tempo…

— Ishi. Nem me fale de tempo… não tenho pra perder.

— Há muito tempo que você não me procura. Acho mesmo que já se esqueceu de mim. Às vezes até me procuro nessa imagem aí. Busco alguma coisa que me desperte, mas parece estar adormecido aí dentro. Que pena!

— Como assim? Não faço ideia do que você está falando… – Disse Mara com pouco caso. – Acho que preciso mesmo é ir dormir. Vejam só, estou conversando com um espelho! 

— Espere! Não vá! Fique mais um pouco. Precisamos de sua ajuda…

A luz se apaga e mais uma noite acontece em meio aos sonhos e lembranças confusas daquela mulher. Cansada da vida dura que leva, mas resiliente.

Enquanto pensava se sairia da cama ou não, se levantava ou não para ir ao trabalho ouviu uma voz vinda bem de trás dela. Vinha novamente do espelho na porta do guarda-roupas…

— Bom dia, professora!

— Ai, ai, ai ! Ora essa, professora??Nem bem acordo e já ouço vozes.  Mas é melhor um bom dia que um dia tenebroso como os outros… Disse Mara

— Bora levantar, mulher! Há muita coisa pra se fazer e você está muito atrasada!

— Mais essa. Um espelho falante e ainda me diz que estou muito atrasada. Atrasada pra quê?

— Não está te faltando nada? Há tempos você não me vê, não consegue sentir o que estou sentindo. Onde está você que não encontro aqui? Não me encontro também em você…

— Estou onde sempre estive e ai de mim se não estivesse. Devo estar ficando maluca. O que está acontecendo comigo? Não tenho tempo pra essas histórias. Preciso me tratar.

E sem dar ouvidos à voz, saiu, para mais um dia de labuta, cansada, desanimada, desmotivada e perdida de si mesma. Mara já não era mais a mesma há tempos.

Como ela desejava que tudo tivesse sido diferente. Que a vida tivesse lhe sorrido mais e sido mais generosa.

Quisera ter amigos, memórias lindas e histórias pra contar, mas a única coisa que havia de sobra, eram dívidas, dores, amores desfeitos, cansaço e lutas e lutas. Uma desesperança infinita.

Ela precisava fazer alguma coisa antes que enlouquecesse.

E naquele dia ao voltar pra casa, lembrou-se dos episódios do espelho. E sem saber ao certo se aconteceram ou se foram alucinações ou sonhos, resolveu olhar-se no espelho. Havia um certo receio do que veria, pois já haviam se passado alguns anos… Porém, dessa vez havia muito carinho e respeito por aquela imagem que seria refletida. Fosse qual fosse.

E qual não foi sua surpresa e emoção ao ver, mesclada na imagem de agora, com suas rugas, tristeza e cansaço, a mesma imagem da menina que há anos lhe cobrou que acordasse e a ajudasse.

— Que criança linda eu fui. Quantos sonhos me cercavam!

Chorou e quis pedir perdão à menina, mas essa desapareceu sorrindo e deu lugar a uma outra imagem também fundida naquela mais velha e sofrida. Porém essa continha o viço da idade madura e plena. Plena de beleza, de alegria, coragem e força.

— Céus! Como fui forte e corajosa!!

Essa fez Mara chorar copiosamente, não entendendo por que se desapegou e se distanciou daquela mulher tão destemida e forte que lhe sorrira por muitas vezes ao longo dos anos, quando se olhava no espelho.

Aos poucos e com muita suavidade as imagens foram deixando o espelho.

Até que ficou apenas Mara, consciente de que todas aquelas mulheres e outras tantas que por vezes lhe visitavam diante do espelho, eram a mesma pessoa. E que de tempos em tempos vinham lhe recordar quem ela era. Vinham buscar a Mara de hoje pela mão, pelo colo, pelo olhar e pela sabedoria. Elas não deixariam aquela mulher vacilar.

E agora, sabedora da força que havia em seu interior levantou a cabeça, com um grande sorriso, beijou o espelho e disse baixinho: Obrigada!

E feliz e encorajada foi à luta.

*Texto elaborado a partir do estudo de “O Espelho”, de Machado de Assis.

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Sou a Luzia Maria de Souza, mãe do Silas e do André. Filha da Carminha e do Duca. Irmã da Lina, da Letícia, do Alan e da Laíse. Esposa do Fernando de Bulhões. Sou escancaradamente amante da vida, da alegria, da música, do movimento e de gente! Estou dando meus primeiros passos como escritora. Mas gosto mesmo é de registrar minha própria história e navegar em minhas memórias e reflexões. Afinal, sou o resultado das coisas que vivi, do convívio com pessoas que passaram por mim e deixaram marcas em minha vida.


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Um comentário em “EU E O ESPELHO”

  1. Que texto lindo e criativo! Importante lermos e relermos, para que lembremos sempre de nossos “eus” , às vezes tão esquecidos e abandonados por nós.

    Parabéns, Luzia! 👏👏

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