NOTA DE QUASE PESAR E UMA CARTA A JORGE AMADO

Por Leandro Bertoldo Silva

A NOTA

É com quase pesar que noticio uma tentativa de assassinato. Calma, deixe-me explicar. Refiro-me ao assassinato (mais uma vez) da nossa língua, da nossa cultura, da nossa história. Digo “quase” porque não chegou às vias de fato, mas nos abriu uma chaga desoladora.

O CASO

Ganhei de uma amiga uma coleção de Jorge Amado em capa dura com detalhes dourados das casas e ruas de Salvador/BA. Uma coleção de 1980. Pasme! Estava dentro de uma sacola jogada no lixo! Essa amiga carinhosamente os entregou a mim. Eu os peguei, limpei um a um e os acolhi em minha casa. Esse é o triste retrato de parte da nossa sociedade, a mesma que joga livros fora enquanto muitos se ocupam em demasia a produzirem dancinhas em redes sociais e são tidos como influenciadores, quando não chamados de heróis.

Livros encontrados no lixo.
Detalhes dourados das casas e ruas de Salvados/BA
“Que tempos! Que tempos!”

A CARTA

Querido Jorge Amado,

Quero lhe pedir desculpas. Posso imaginar a sua tristeza ao ver os seus livros dentro de um saco plástico jogados no lixo. Talvez você até saiba quem praticou essa tentativa de assassinato, eu nunca vou saber. Não, não é exagero meu e você bem sabe disso. Dentro daquele saco estava Gabriela e todos os capitães da areia, o Pedro Bala, o Sem Pernas, o Pirulito, o Boa Vida… Coitado do Boa Vida! Conheceu mais essa nesse nosso “País do Carnaval”. Lá também estava o Quincas Berro Dágua a morrer mais uma vez nessas “Terras do sem fim” quase sem ver “A luz no túnel” sem a ajuda do “Cavaleiro da esperança” porque todos eles estavam lá também sem esperança alguma. Enfim, Jorge Amado, estavam dentro daquele saco de lixo uma infinidade de personagens gestados ao suor de sua pena. Toda essa gente nasceu e fez nascer uma enorme quantidade de pessoas, artistas, atores, diretores de teatro, telenovelas, maquiadores, cenógrafos, figurinistas, até mesmo o baleiro da esquina e das casas de espetáculo e cinema cuidou da sua família por causa da sua obra, ou melhor, das suas obras. Muitos, muitos escritores e escritoras, inclusive este que lhe redige essa carta, não apenas em nosso Brasil, mas em outros países, como em África, foram influenciados pelo turbilhão de páginas criadas e recriadas por essa cabeça de cabelos fartos. Gente como Mia Couto, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Paulina Chiziane, entre outros e outras bebedores e bebedoras de sua fonte estavam ali a morrerem um pouquinho. Uma chacina.

Mas isso ainda diz pouco. Quase assassinaram dias, noites, madrugadas a fio em que se debruçou em sua máquina de escrever para dar vida à nossa cultura, esperança às vendedoras de acarajé, dignidade ao povo brasileiro, da Bahia de todos os santos para o mundo inteiro. Tudo jogado dentro de um saco e posto sem dor e sem consciência no lixo. No lixo…

Caro Jorge Amado, tentei resgatar as suas palavras, limpá-las em meio a páginas manchadas e amarelecidas, muitas estragadas. Estive em companhia de Tieta e com muito cuidado passei de leve o pano embebido em solução de compressa sobre ela para trazê-la à convalescença. Fiz o mesmo com muitos outros. Alguns recuperaram mais prontamente, teve aqueles mais necessitados e também os mais delicados. A vida é assim, cada qual com sua sorte e destino. Eu tentei.

Jorge Amado, desculpe a intimidade de chamá-lo assim em palavras sem saber se atrapalho o seu descanso (ou trabalho?). Atrapalho? Seja sincero. Principalmente por ser a primeira vez a fazê-lo de forma tão assim direta. Mas eu lhe digo: antes fosse apenas essa desculpa e não àquela, motivo dessa carta, isto é, a tentativa de assassinato. O meu pedido é porque eu como escritor e professor, ainda mais de literatura, em algum momento falhei. Poderia ter feito um pouquinho mais, falado mais de você para alguém, apresentado a sua obra, contado as suas historias. Talvez ao fazer isso tivesse chegado a quem teve a estupidez de fechar naquele saco plástico a riqueza que poderia ter lhe salvo a vida, não a sua ou a minha; a sua já está salva, a minha em tentativa, mas a dele mesmo ou dela e de tantos deles e delas nesse mundo, porque, infelizmente, em nosso país isso é fato corriqueiro e se a literatura é uma escada muito alta, e eu sempre acreditei nisso, mais vale deixar os degraus intactos a remendá-los. A subida é muito mais certa e segura contra a ignorância.

Bem, caro Jorge, nome de santo, Amado, nome do que mais se deve propagar nesse momento, como bem disse Angelo Campos, um amigo filósofo, fico por aqui, não sem antes enaltecer em alto e bom som que os livros estão comigo agora em ambiente seguro, não se preocupe.

Poderia acrescentar aqui nessas linhas a espera de sua resposta. Não acrescento. Deixo-o livre. Há de ter afazeres muito mais importantes por aí.

Cordialmente,

Leandro Bertoldo Silva.

P.S. Não poderia deixar passar a oportunidade de pedir-lhe que envie um abraço meu ao Graciliano, à Clarice, ao Carlos, ao Manoel, aos nossos Joões – o Cabral, o Guimarães e o Ubaldo -, ao Fernando, à Lygia, ao Gullar, Cecília, Henriqueta, Raquel, a sua saudosa Zélia e a tantos outros que foram em suas existências por aqui e ainda o são por aí autênticos e verdadeiros “influenciadores”, esses sim.

Que tempos! Que tempos!

________________________

Bem, essa é uma daquelas histórias que nos fazem pensar: o que andamos a fazer com a nossa cultura, com os nossos valores? Livros não são amontoados de papel a jogar no lixo, são memórias a guardar na alma e a compartilhar com o mundo. O que acha disso? Comente. Compartilhe.

Forte abraço!

Até a próxima.


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20 comentários em “NOTA DE QUASE PESAR E UMA CARTA A JORGE AMADO”

  1. Infelizmente este é o desfecho de muita outras histórias. Parece que ficamos a enxugar gelo. Mas é como o beija-flor no incêndio da floresta. Ele fazia a parte que lhe cabia. E assim esperamos que cada um com seu potencial e influência faça sua parte para evitar novos crimes como este que Leandro conseguiu evitar!!! Saudações literárias!

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  2. Você tem razão. Ler virou coisa de segunda ou de nenhuma necessidade, portanto, livros não têm valor, mesmo de um Jorge Amado. Importantes são os tais influenciadores, como você disse. E cada qual na sua “rede”, tentando mostrar-se. Ler? Para quê? Parabéns, meu amigo.

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    1. Que belo conto!
      Confesso que fiquei com uma lágrima no canto do olho, não pela tentativa de assassinato,mas pela forma como o resgate surgiu.
      Os livros não envelhecem e o conto levou -me aos escritores angolanos como Pepetela, Agualusa e outros assim como Mia Couto,um Moçambicano que não se deixa.
      Parabéns pelo conto .
      Li muito as obras do Jorge Amado assim como dos africanos mencionados.
      Viva a literatura!

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      1. António Alexandre! Que belo o seu comentário. Somos continentes irmãos. Eu leio muito a literatura africana. Todos esses em especial Mia Couto são escritores de excelência. Eles falam muito de Jorge Amado, que beberam em sua fonte e hoje são fontes a serem bebidas. Maravilhosos!! A literatura de vocês é sensacional!

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      1. Un crimen imperdonable….leyendo Amado …..sabía sentirme con una amiga que leía el alma femenina y la esencia de la sensualidad de la vida….

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  3. Graças meu amigo, por salvar essas preciosidades, a bela memória preservada. Jorge Santo, Amado Jorge, aqui vamos nós, segurando as mãos dos Capitães de Areia, rumo certo a Tocaia Grande. Quem dá o Norte é esse sonhador, meio jagunço, meio Quixote, Capitão Leandro, o Alforriador.

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  4. Parabéns Leandro pelo Conto!
    Jorge Amado é um dos grandes expoente da literatura brasileira e ter salvo umas de suas obras no contexto em que descreves é de facto o perpectuar do legado deste grande escritor, por outro lado é dar a possibilidade para que futuras gerações da literatura tenha contacto com os grandes monstros da literatura, sem esquecer que o conto espelho literalmente os esforços que tens empreedido em pro da massificação e continuidade das obras literárias.
    Agradeço por fazer parte do seu projecto.

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  5. Parabéns Leandro pelo Conto!
    Jorge Amado é um dos grandes expoente da literatura brasileira e ter salvo umas de suas obras no contexto em que descreves é de facto o perpectuar do legado deste grande escritor, por outro lado é dar a possibilidade para que futuras gerações da literatura tenha contacto com os grandes monstros da literatura, sem esquecer que o conto espelha literalmente os esforços que tens empreendido em pro da massificação e continuidade das obras literárias.
    Agradeço por fazer parte do seu projecto.

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