Por Leandro Bertoldo Silva
Quando as luzes se apagam enxergamos com mais clareza…
Imagine uma cidade em um sábado à noite, onde, de repente, a metade de suas luzes se apagam momentos antes da chegada de amigos tão esperados para o jantar. Qual a sensação você teria?
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Muitas vezes temos a tendência de enxergar somente o lado negativo de certos acontecimentos, e esse comportamento nos faz achar tudo relativamente sombrio. Isso, naturalmente, é um engano. A vida, com a sua sutileza peculiar, mostra-nos o contrário e como estamos é doente dos olhos e, por que não, dos sentidos, como bem disse Alberto Caeiro:
“O que vejo a cada momento
é aquilo que nunca antes eu tinha visto,
e eu sei dar por isso muito bem.”
Quando nos colocamos frente às situações tais quais elas se apresentam e olhamos de verdade para elas na tentativa de extrair o melhor, descobrimos a poesia antes não percebida. O que aparentemente é um transtorno, na verdade é um enorme presente embrulhado no papel das possibilidades.
Estava eu fazendo a barba após um banho num início de noite de sábado, quando subitamente a luz foi embora, não apenas da minha casa, como da metade da cidade, deixando todos na mais completa escuridão. Era possível ouvir os bramidos e lamentos ecoando de cada canto, de cada esquina e casas, como se as paredes, ao invés de ouvidos, tinham enormes bocas ao emitirem gritos à la Edvard Munch.
Pedi minha filha para trazer uma lanterna para acabar de fazer a barba tranquilamente já pensando como faríamos com a visita de dois amigos convidados para o jantar. Em momento algum, tanto eu como Geane, minha esposa, queríamos desmarcar o encontro, afinal não tinha sido a primeira vez que o tentávamos e tudo já estava adiantado desde o dia anterior, incluído os ingredientes de um delicioso yakissoba, além das jabuticabas colhidas do pé do quintal da minha casa para o preparo de um vinho frisante, sem nos importarmos se estávamos cometendo ali qualquer tipo de gafe ou incoerência culinária.
Mas o melhor mesmo estava por acontecer… Fomos os três — eu, minha esposa e minha filha — para a sala. Enquanto Geane tentava falar com os amigos pelos dados móveis do celular, e ao deixar nele a luz da lanterna acesa, esta fez refletir na parede as nossas sombras enormes. Para mim e minha filha foi um generoso convite à fantasia. Começamos a brincar de fazer animais com as mãos e a criar histórias onde a cobra de 3 metros engolia uma aranha frágil e indefesa. Certo, também criamos histórias de lindos passarinhos voando entre as flores… Lembrei-me de quando eu era criança e de como passava horas a fazer essas projeções usando o abajur da minha mãe, e só então me dei conta de que nunca as havia feito com minha filha! Larguei a reflexão de tamanha perda de tempo e mergulhei nas aventuras do cachorro que corria atrás do coelho, do jacaré ao mostrar língua para o sapo e do elefante ao se fartar de beber água no poço.
Geane confirmou a vinda dos nossos amigos mesmo sem luz. A partir daí, começamos a encher a casa de velas. Enquanto as velas eram acesas na cozinha e na sala, encarreguei-me de acendê-las na varanda para uma boa recepção de boas-vindas. Tudo começou a ficar num clima mágico, meio idade média, e nossa casa já não era casa, mas um livro de histórias onde cada cantinho guardava um capítulo surpreendente. O melhor deles aconteceu quando fomos para a cama de casal e eu perguntei para minha filha se ela queria de fato ouvir uma história, pois eu leria para ela com a luz da lanterna. Yasmin logo concordou. Eu fui até minha estante e peguei o primeiro livro que minhas mãos tocaram. O título? “O menino que perdeu a sombra”, do Jorge Fernando dos Santos. Quase não acreditei na delicada coincidência de um menino que tateava no escuro à procura de si mesmo. A diferença minha e de Yasmin estava em havermos nos encontrado naquela escuridão.
No fim da leitura, como todo bom livro a nos surpreender, a luz voltou, mas nada era como antes, tudo tinha mudado: as percepções, os sentimentos, as descobertas. As velas foram apagadas, os amigos chegaram, sorrisos e abraços em festejos de carinho, brindes erguidos. Mas dentro de mim continuava aquela doce escuridão a encher de luz as nossas sombras. E mais uma vez veio à memória o velho Caeiro e de como estava certo:
“O mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…”
Pura verdade…
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Gostou da história? Escrevi essa crônica para mostrar como tudo que nos acontece é motivo de celebração, mesmo que inicialmente possa parecer o contrário. Se olharmos com cuidado, sempre haverá uma apreciação pronta para virar lindas histórias para contar.
E você, já passou por algo parecido? Um momento que se descobriu grandioso? Agradeço mais uma vez a sua leitura e peço que comente, compartilhe as suas alegrias.
Forte abraço!
Até a próxima.
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Ahh… Meu amigo Leandro!!! Que delícia de crônica!! Fui revivendo as cenas descritas e saboreando-me desse banquete de surpresas das penumbras… Acho que vou preparar um jantar à luz de velas quando vocês decidirem vir nos visitar!!! Hahahah… Só para criarmos um cenário de bichos de parede para contarmos histórias e estórias…
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Oh, minha amiga… Perfeito!!! Será maravilhoso 🙂
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Mais cedo ou mais tarde sempre acabamos tendo que entrar em acordo com a vida… ela sempre tem razão!
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Exatamente, Patrícia! É quando vemos o quanto nos afastamos dela e como é necessário retornar! Obrigado.
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Muito emocionante sua crônica amigo ,fiz uma viajem a infância quando brincávamos a luz de lamparina e ouvia histórias de meu pai e primo ,era festa de imaginação muita alegria e saudades desse tempo.
Ah!amigo mais vc trouxe ele agora mesmo com sua linda crônica.
Parabéns!
Amei !
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Obrigado, Sãozinha! Realmente era um tempo que a simplicidade reinava em nossas casas… Obrigado!
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