BOTARAM A ANILHA

Por Kafala Tibah

1972, período colonial, início do fim do período colonial. O colonialismo português caiu em 1975, em Angola, onde o povo Angolano conquistou a independência nacional. Naquela altura muitos angolanos atravessaram as fronteiras dos Congos, unindo-se aos irmãos que já lá estavam na preparação militar para enfrentar os colonos para a conquista da independência. Nos bairros de Luanda, já se ouvia falar de muitos irmãos que desertaram do exército colonial, seguindo a trajectória traçada pelos outros em direcção aos Congos.

Nos musseques de Luanda, muitas crianças brincavam ao som das músicas infantis coloniais e desfrutavam diversos “kitutes” da banda comprado nos mercados daqueles bairros ou defronte as escolas, vendidos por mamãs vestidas a bessa ngana.

Saídos da escola nº 229, ali no bairro Terra Nova, que agora é chamada de Escola grande, Molépe, Man Tex, Megas e David, combinaram para defrontarem um jogo de matraquilho, alí na esplanada do Bar Rei Pelé.

Saíndo da Rua nº 23 da Comissão do Rangel, também chamado por Reordenamento do Rangel, entraram no referido bar, onde encontraram alguns adultos saboreando uma cerveja nacional. Enquanto isso, bem ao lado, se ouvia o som de música angolana, do ensaio do conjunto musical Dimba Dyá Ngola.

Molépe, dos valores que retirou furtivamente do vaso metálico onde Maria Luísa, sua mãe depositava os valores da venda do carvão comercializado em casa, foi até ao balcão do bar para trocar a moeda de dois e quinhentos (2$50), por duas moedas de 1 Escudo e uma de cinquenta centavos, pois no matraquilho somente se podia introduzir moedas de 1 Escudo.

Ao introduzir-se a moeda, esta ficou presa lá no interior do orifício de entrada, pelo que a massaneta do matraquilho não accionava para as bolas saírem e iniciar-se os dois jogos anunciados.

Molépe dirigiu-se ao balcão para efectuar a reclamação e foi atendido pelo empregado português transmontano que inspeccionou o matraquilhos e constatou que a massaneta encravou e disse:

– Já botaram anilha “porra pá, esses pretos”. Ó Luciano fecha a porta, ninguém sai!

Todos amigos de Molépe meteram-se em fuga mas Molépe não aceitou retirar-se pois queria o seu dinheiro de volta.

O “busugo” retirou-se da esplanada e regressou com um cabo de pvc enrolado que possuía mais ou menos 70 cm dizendo: – Tu “bás” dizer quem botou a anilha, ah! Sim tu “bás” dizer. Luciano traga um balde de “yagua” e molha esse “sacana”.

Molépe do outro lado resmungava, reclamando o 1 escudo. Luciano surgiu de surdina lançando água gelada por o dorso do “negrinho” refilão que reclamava o seu dinheiro.

O quê isso! Gritou Molépe ao sentir o frio daquela água que acabava de sair da câmara frigorífica. Luciano sorriu e de repente o “busugo” começou a chicotear Molépe que ficou com 5cinco traços bem marcados pelo cabo pvc.

Molépe chorando, gritava que queria o seu dinheiro e nada teve a ver com a tal de anilha que ele desconhecia.

Um dos empregados abriu o portão corrido para que Molépe saísse, enquanro seus amigos fora do bar o aguardavam tristemente.

Molépe saiu do bar com uma moeda de 1 Escudo e outra de cinquenta centavos no bolso tendo perdido a outra moeda de 1 escudo.

Correu pela rua 19, buscou pedras e arremeçou-as para dentro do bar, como se estivesse a lançar uma arma de arremeço e correu até a rua 23 tendo já encontrado os seus amigos. Naquele momento, alguns clientes, assim como o “biaku” correram para o interior do bar. Molépe receava dirigir-se ao mercado do Coelho para informar sobre o sucedido á sua mãe quitandeira.

Mesmo assim, Maria Luísa tomou conhecimento no dia seguinte quando a senhora Leopoldina, esposa do velho Lulú se deslocou ao mercado para fazer algumas compras para as refeições do dia. Tia Leopoldina tomou conhecimento que seu sobrinho Molépe levou uns açoites e tivera o corpo marcado através de seu neto Bernardo, amigo muito próximo de Molépe.

Maria Luísa enfureceu-se, amarrou um pano que a cobriu da cintura até abaixo do joelho. Hum! Filho da… do “biaku”! Bateu no meu filho, meu sétimo filho, criança pedida depois de cinco meninas! Filho da… esse “zakela” vai sentir o peso!- dizia Maria Luísa enfurecida. Mana Leopoldina, faz favor, diz a Melita para vir controlar o negócio, vou no Bar Rei Pelé vou já estragar tudo. “Sá” Visita, por favor controla a minha filha, por favor.

Deste modo, dona Leopoldina despediu-se de Maria Luísa, dirigindo-se para casa, pois vivia na mesma rua da Comissão do Rangel. Eram vizinhas e primas por afinidade. 

Maria Luisa era irmã de Manuel Lixa e filha da Avô Tibá que vivia na área do bairro Sambizanga denominado Santo Rosa, nome de um “pula” lisboeta, comerciante naquele bairro. A semelhança de Manuel Lixa, Maria Luísa também lutava muito, pois já havia dado umas “kabelenhas” no Kibila Tata, bandido do Marçal, onde vivera no período colonial.

Maria Luísa, mulher de grande estatura, com bastante força, era bastante ágil em dar cabeçadas em uma briga, sendo capaz de derrubar homens em uma luta. A mesma antes de se deslocar ao Bar, passou por sua casa, na rua nº 23, pois este bar era paralelo à rua nº 21. Já em sua casa, preparou se, vestindo um calção de tecido do tipo “ganga” e assim dirigiu-se para o referido bar. Já passava das 16 horas; horário de encontro de trabalhadores que ali se destacavam para saborear uma boa cerveja ou tomar um bom vinho palheto à mistura com um “sarrabulho”.

Bem ao lado, e por detrás do Bar, estava a residência onde ensaiava o conjunto “Dimba Dya Ngola”, que no momento cantavam o semba “Katolotolo”, fazendo dançar algumas crianças que apreciavam as outras a entreterem-se com o jogo da buraca, enquanto pessoas adultas passavam e davam toques dançantes à moda angolana.

– Hum! “Katolotolo”? Esse “polaco” vai me sentir, ele vai ver, vai se sentir como se tivesse “Katolotolo”! Está a brincar com quem? – dizia Maria Luisa. Ó seu “biaku” de mer… Você bateu o meu filho, porquê? Você já alguma vez “cagaste” um filho, já alguma vez sentiste a dor de “nascer”? Filho de uma vaca que não dá leite! Me explica, estou aqui para ouvir porque eu já ouvi o meu filho!- perguntou enfurecida Maria Luísa.

O “polaco” tremia e da explanada viu um polícia de raça negra de grande estatura, passando, chamou-o para acudir a situação, uma vez que o trásmontano sabia o que lhe esperava. O polícia, tratava-se do “kota” Segunda João Cosme, o agente nº 50 da PSP- Polícia de Segurança Pública, “malangino” de gema que por sinal vivia na rua onde vivia Molépe.

O polícia entrou no bar e perguntou o que se passava e Maria Luísa respondeu imediatamente, falando sem pausa.

– Mu beta mwene, mana Luísa! – dizia o polícia, chateado no seu íntimo.

GLOSSÁRIO:

bás”- pronúncia errada do cidadão português, querendo dizer “vais” do verbo haver. “Biaku, Busugo, Pula, Polaco, Zakela”- Nomes depreciativo para designar o homem branco português. (de notar que existiam essas palavras todas para que o português não se apercebesse que se falava deles e era muito utilizado na luta de clandestinidade contra o colonialismo português). “Kabelenhas”- s.f. cabeçadas, português angolano. “Katolotolo”– enfermidade provocada pelo mosquito da chicungunha “Kitutes”: s.m (Brasil) paparico; iguaria delicada. “Sarrabulho”- s.m. Prato típico angolano que consiste no guisado de miudesas de porco. Cozinha com o sangue do mesmo animal. “Mu beta mwene”, mana Luísa – (traduzido da língua nacional kimbundu- Bate-lhe mesmo, mana Luísa).

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Moisés Kafala Neto.
Pseudônimo literário: Kafala Tibah. É casado.
Nascido em Angola, no dia 05/12/62.
Profissão: professor – ⁠Professor de Análise Matemática e Álgebra e é também Criminalista.
Membro fundador da BJLA- Brigada Jovem de Literatura de Angola, possui poemas publicados em antologias tanto angolanas como brasileiras.

  • Músico Gospel, usando como nome artístico- Kafala Neto.
  • ⁠Actualmente é Vice-presidente para a área científica do Instituto Superior de Angola- ISA.

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