A VIDA TEM A COR QUE VOCÊ PINTA

Por Leandro Bertoldo Silva

Como podia ser tão diferente? Desde criança se mostrava o oposto dos outros miúdos. Na verdade isso era sentível na gestação. Nas consultas médicas, se as outras mães relatavam um comportamento tal, o menino, ainda em formação, apresentava-se já na morada do qual. Não por acaso nasceu sorrindo… Ao crescer queria tudo diferente. Preferia pistache a doces, não gostava de balas; na escola, na hora do recreio, preferia os livros na biblioteca — esse comportamento de livros o perseguiu a vida toda. Inclusive, o encontrou em um poema: “O menino que carregava água na peneira”. Ficou encantado! Afinal, aquele tal de Manoel o entendia. Descrevera tudo com tanta clareza! E a sua mãe era igualzinha à mãe do menino.  Passou a ser chamado de “o menino dos despropósitos”.

Ao crescer continuou a encher os vazios e a fazer pedras dar flor. Não se via no lugar de todo mundo. Se todo mundo ia por ali ele ia por aqui, e não importava com os falatórios, continuava a desenhar pipas no céu.

Os anos passaram e aquele menino já era um velhinho – não gostava da palavra “idoso”; era velho mesmo e sentia orgulho disso. Rodeado de filhos, netos, sobrinhos e afilhados, reuniu-os todos para se despedir. Foi assim, ao som de canções e brindar de copos, inclusive os dele, logo após o fim da festa, ele se sentou e fechou os olhos pela última vez tão feliz, tão sereno, tão despropositado. Estava na hora de ser árvore, estrela não.

Algum tempo depois, um de seus bisnetos, outro garotinho a receber o nome de Manoel, encontrou nos guardados do avô um papelzinho todo dobrado com marcas do tempo. Ao abri-lo lá estava o segredo dos despropósitos. Nele lia-se:

São muitos caminhos.
Façam suas escolhas.
SUAS escolhas…

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A vida é uma grande tela em branco para ser pintada… O tempo todo. Quais são as suas cores?

Forte abraço!
Até a próxima.

PENSANDO BEM, QUE MAL TEM?

Por Leandro Bertoldo Silva

Sabe aquelas histórias bem curtinhas que faz a gente até pensar que é mentira? Pois é… Aqui vai uma!

Ah, eu me lembro, eu me lembro… Foi um alvoroço naquela cidadezinha. Nunca havia acontecido um assalto, umsinho sequer para contar história. E olha que história era o que mais existia no meio daquela gente.

Mas naquela noite o falatório foi geral. Logo que o sacristão abriu a igreja para a missa das oito, alguém gritou: Cadê o Santo Antônio? Virgem Maria! O São Pedro também sumiu! E lá se foi o São João! Socorro, Ave Maria! Foi você, Marinalva? Me respeita, seu Batista! Foi a Emengarda! Queria se casar, levou o Santo Antônio e os outros pra padrinho.

E agora, São José?

No meio de toda aquela agitação um risinho se ouviu. Para espanto de todo mundo, descia em azul do manto de Nossa Senhora a própria Santa a mirar com um doce olhar o rosto de cada um.

— Como disse o poeta: “não entendo essa gente, seu moço, fazendo alvoroço demais…” É festa junina, ora essa! Santo não tira férias, mas também pode brincar, ou não pode?

Ao dizer isso, apontou para a praça da cidade toda enfeitada com bandeirolas coloridas, barraquinhas e até pau de sebo. Lá, bem no meio, estavam eles.

Que aquarela!

Quando oiei a fogueira,
Antônio, João e Pedro
brincavam nela…

Porque razão não há de poder os Santos pularem as suas fogueiras?

É, pensando bem, não faz mal para ninguém.

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Essa é uma história despretensiosa, de um passeio despretensioso pela cidade onde moro. Ao passar pela praça enfeitada para as festividades juninas que gosto muito, vejo uma grande fogueira. Ao olhar para a Igreja penso nos Santos lá dentro loucos para virem pra fora… Por que não?

Forte abraço!
Até a próxima.

MORTE-TEMPO-VIDA

Por Fabiene Lemos*

A morte nos leva a um questionamento idiossincrático. Toda a nossa má-fé de não querer ver a realidade carregada de limitações humanas é, simplesmente, evaporada. O clima fúnebre que compadece os corações das pessoas em tempos de luto as faz solenes mesmo que durante frações de segundos. São instantes longos e angustiantes de percepção que a finitude é irrevogável. Não há sofisma ou eufemismo que maquie o inevitável fato que a morte é a única certeza absoluta da vida.

A frieza, o cinza, a melancolia, os silêncios ensurdecedores e os gritos de súplica demonstram o mais próximo de total autenticidade humana, num cenário de despedida eterna. O fim. O acabou. Já não existe mais tempo. O último grão de areia da ampulheta da vida caiu. Esvaiu-se todo o sopro de vida. Uma segunda chance? Teria feito algo diferente? Talvez outras escolhas, outras histórias, outras vivências…?

A vida para alguns consiste como um doce delicioso que é preciso apreciar com todo o deleite porque ela é finita, para outros é uma tortura interminável que se assemelha mais com o fel. A dicotomia finaliza com a morte. Pelo menos para a cultura ocidental a morte apresenta significações trágicas que simbolizam perdas. A consciência presente manifesta um sentimento nostálgico precoce e um certo ardor na alma das infinitas possibilidades que já não existem mais.

O homem sofre narcisicamente toda vez que a vida lhe mostra, estupidamente, que na verdade: ele não controla tudo e tampouco tem o poder sobre tudo. O segundo maior inimigo das pessoas depois da morte é o tempo, que quase nunca está a favor. Ele é muito mais traiçoeiro para as pessoas que amam.  O que fica evidente ou pelo menos deveria ficar: estar no passado é uma corrente ilusória que impossibilita as pessoas de vi(verem) o presente. Enquanto o presente converte-se numa passagem rápida, sem perceber, sem contemplar todos os presentes e raros momentos que nunca irão se retornar.

Os presentes que a vida pode oferecer se decorre em poder estar e testemunhar a sorte de viver. De amar e ser amado. De errar e poder corrigir o erro. De pedir perdão, de perdoar e de se perdoar. De não desperdiçar a chance única de viver. De não cometer o azar de morrer em vida. Mas é só um talvez. Só se pode morrer porque está vivo. Mas há alguns mortos por aí que respiram. Tudo depende da consciência do sujeito e das suas incongruências humanas. Se por um acaso, morre-se no seu âmago toda a satisfação de se redescobrir e de ser resiliente (arte fênix exigida pela vida para exercer recomeços). Então, se trata de um defunto andante que necessita urgentemente de um sopro de vida.

Perdoar ainda se apresenta como uma ação subestimada frente à qualidade da saúde mental. Mágoas são âncoras muito pesadas que limitam as pessoas à transcendência. Ninguém consegue progredir, completamente, se estiver preso em construções passadas regidas por sentimentos negativos. Certamente, é muita energia investida em se manter preso pelo NÃO do perdão e pelo SIM do orgulho.

No entanto, ainda pode haver mais complexidade no ato em decidir se auto perdoar. Pois isso implica em reconhecimento de fraquezas e limitações. Somos seres em constância mutabilidade. Não somos sempre os mesmos e, portanto, não somos nossos erros. Os erros fazem parte de uma jornada de aprendizagem chamada: VIDA. E talvez por isso, exercer o perdão seja a forma mais compatível de demonstrar amadurecimento e evolução intrapessoal.

 O mais cômico, porém com pouca graça, constitui na infeliz sem lógica do sujeito só se perceber vivo e sem tempo quando está diante da morte conceitual – finalização absoluta da esperança, do oxigênio e da realidade presente. Um resgate? Uma segunda oportunidade? Ahhhh! O tempo! O traiçoeiro tempo.

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Fabiene Lemos é psicóloga na abordagem Existencial Humanista e colaboradora da Árvore das Letras.

Quarta Literária é uma ação de fomento à literatura independente.

Participe da Vivência Novos Autores, um encontro on-line semanal de leitura e produção literária. Saiba mais AQUI.

PESSOAS NA PESSOA

Por Leandro Bertoldo Silva

Era o mesmo ritual todas as manhãs. Ao acordar e logo depois do desjejum, se preparava para ir à biblioteca. Lá o recebia o bibliotecário com um olhar inquiridor como se esperasse sempre outra pessoa.

— O que vai ser hoje, Seu…

Nunca terminava a frase. Já se passavam meses e não lhe sabia o nome.

Seu… estranhava esse comportamento e essa maneira de ser recebido como se fosse sempre outro alguém. Com o tempo passou a compreender o homem, pois a cada dia sentia-se diferente. Passou a olhar-se no espelho e a cada vez era como se sua imagem se desfocasse antes de se firmar quase imperceptivelmente alterada. Não era apenas uma ruga a denunciar a passagem do tempo ou outro indício físico a marcar-lhe mudanças, mas algo a metamorfosear os sentidos e desejos da natureza de sua alma.

Gostos culinários se alternavam, certezas e convicções desmoronavam e transfiguravam em outras antes rejeitadas. Os cabelos outrora partidos ao meio ganhavam dia a dia um penteado inédito. É como se já não tivesse filosofias, tivesse sentidos… Tudo transformava, menos o gosto pela poesia.

As mudanças se sucediam e o bibliotecário já não sabia quem recebia, embora nunca o soubera. Um dia, Seu… ao devolver um dos livros tomado por empréstimo deixou esquecido dentro dele um papel escrito à lápis- nunca usava canetas -, onde se lia:

Um certo poeta
sempre viverá em mim.
Ou melhor, em mins…

Abaixo dos versos estava escrito um nome:

Bernardo Soares.

Descobrira enfim.

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A poesia sempre nos transporta para outros lugares, muitos deles versões de nós mesmos… Quais são as suas?

Forte abraço!
Até a próxima.

O QUE FAZ ANDAR A ESTRADA?

Por Leandro Bertoldo Silva

Quem me conhece sabe: há tempos digo que a literatura de nossos irmãos africanos (e a África são muitas) é uma das vozes mais marcantes da contemporaneidade. Escritores como Pepetela, Luandino Vieira, Mia Couto, Paulina Chiziane e tantos outros, assim como Mangel Faria, Tomé Nassapulo, Antônio Alexandre, Kafala Tibah que integram hoje a minha irmandade literária na Árvore das Letras, tornaram-se meus pais e mães de referência do que mais belo é produzido em nossas letras e em nossa língua portuguesa. Ter uma crônica minha — Crônica Testamento — publicada no Jornal Pungu Ndongo, de Angola, é mais do que uma alegria, é a felicidade de uma certeza que eu, quando criança, tinha ao sonhar em ser escritor e lia de cima do pé de ameixa os meus primeiros livros. Nascia ali, entre galhos e frutos, a minha caminhada na vida.

Não por acaso tenho para mim uma frase de Mia Couto:

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”.

E aqui estou eu neste caminho irmanado com tantos amigos e amigas das letras ao fazer da literatura a minha casa, ao abrir as suas portas e voar para além-mar, como também trazer para cá o melhor que existe lá.

Que essas estradas frutifiquem; construamos pontes ao invés de muros e façamos da literatura um único lugar sem fronteiras e distâncias, porque o que está longe se torna perto na descoberta do olhar.

Sigamos.

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Deixo aqui o meu agradecimento coletivo a Mangel Faria, António Alexandre, Tomé Nassapulo, Kafala Tibah e todos e todas irmãs e irmãos de África pela partilha e pelo convívio que estamos a construir semanalmente, não apenas pelas publicações, mas pela Vivência Novos Autores, onde, juntos fazemos a literatura frutificar.

Para quem deseja saber mais a respeito da Vivência Novos Autores e de como participar dessa construção literária, é só clicar AQUI.

Sejam todos bem-vindos e bem-vindas.

A TRAVESSIA DA VIDA

Por Elisa Augusta de Andrade Farina*

Certa vez, estive a pensar na vida e nas suas suscetibilidades. Imaginei-a como um romance repleto de suspense, até que se vire a página. Cada dia é uma página nova e diferente com surpresas despropositadas…

Nunca se sabe o que virá até que você se surpreende com a realidade que salta aos seus olhos. Cada manhã na virada da página é o prazer de sentir-se dono de sua história. Você pode registrar alguma coisa maravilhosa ou não, depende do seu posicionamento frente aos empecilhos que terão de ser enfrentados ou contornados. Somos seres incompletos, estamos em constante  evolução. Nascemos indivíduos, mas a meta é alcançarmos a condição de pessoas. A travessia não é fácil. É preciso maturidade e desprendimento para abrir mão de muitas coisas, pessoas e até mesmo de sonhos. Ser o que somos demanda cuidado, já não é possível ser somente na solidão; necessitamos do encontro, pois a vida é feita desses embates…

Cabe a nós acreditarmos no valor da nossa potencialidade de desconsiderar pessoas que nos esmagam, que nos viciam e dos que pensam por nós, que nos roubam a nossa alegria e autonomia, fazendo-nos prisioneiros de nós mesmos. 

Devemos abrir as gaiolas que nos aprisionam e ganharmos os céus, num voo que nos leve aonde quisermos chegar.

Como toda “Maria”, batalhamos, temos forças e ainda fé na vida, mesmo que a dureza da existência queira nos tirar o direito de amar e sonhar.

Temos que perpassar todos os valores capazes de nos tornar pessoas melhores a cada virada de página do livro da vida. Só assim teremos a certeza de que alguma coisa maravilhosa pode acontecer em cada amanhecer da nossa existência.

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Elisa Augusta de Andrade Farina é escritora, presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni e integrante da turma Manoel de Barros da Vivência Novos autores.

Quarta Literária é uma ação da árvore das Letras de fomento à literatura independente.

Participe da Vivência Novos Autores, um encontro on-line semanal de leitura e produção literária. Saiba mais AQUI.

REGRESSO

Por Leandro Bertoldo Silva

Havia ficado estéril de prazeres. Há muito não sorria ao sol, nem à lua encontrava juras ou sequer nas estrelas se aninhava em sonhos. Todo ele era uma secura de pedra, sopro de poeira ao vento das lembranças.

Os anos passavam levando suas vontades. Era rio lavando as pedras sem ser a alegria das águas.

Assim permaneceu por longos anos até se esquecer na lembrança do tempo. Mas bastou um canto, um pio de pássaro ao ressoar com outros cantos e outros pássaros para tornar clara sua escuridão.

Na berma daquela estrada, onde tantas vezes se criançou, lá estavam eles a levá-lo pelas asas enquanto os primeiros raios do sol voltaram a brilhar sem ao menos saber o porquê.

Se ao descriançar não desejou saber o motivo, porque desejaria o reverso?

Fechou os olhos e sorriu quando o tempo se abriu. Junto com o que retornava veio o que faltava. Disse a si mesmo:

O dia amanhece
e o tempo floresce
sons de passarinhos.

Resplandeceu.

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Às vezes é preciso apenas um detalhe para voltarmos a nossa própria alma e nos encontrarmos… O personagem dessa história se encontrou no chamado dos pássaros. Onde você se encontra?

Um forte abraço.

Até a próxima.