
Por Luzia Maria de Souza*
Há alguns anos vivi uma experiência maravilhosa que mudou meu conceito a respeito das coisas e dos bichos. Não me lembro qual era a minha idade, era bem jovem, mas já era independente. Conhecia pouco da vida, mas me virava bem sozinha.
Porém, se aproximava o dia em que eu descobriria a coisa mais importante da minha vida.
Naquele ano, se aproximava a primavera, e seria a mais linda primavera desde meu nascimento. Estava ansiosa, pois sabia que algo novo sempre acontecia naquela estação. Mas aquele ano parecia que seria diferente. Era a época da reprodução. Amava ver os bichos se encontrando e se reconhecendo em meio àquela multidão de pretendentes. Meus olhinhos brilhavam ao ver os ovos que minhas amigas já acasaladas botavam nas pedras e grutas. Gostava de assistir aquele milagre. Sim, milagre! Pois surgia uma vidinha daquele ovo e isso nos fazia chorar de emoção. Pois é, temos sentimentos também.
Naquelas paragens por onde eu vivia, sempre cercada de companheiros da minha espécie, era muito seguro e tranquilo de se viver. Alimento não nos faltava! Um belo pôr do sol sempre nos brindava. E o nascer do sol era pura esnobação. Acho que minha espécie é a que mais se aproxima de Deus e daquele azul infinito e maravilhoso. Abríamos nossas asas de enorme envergadura e ali ficávamos tomando o primeiro banho de sol do dia.
Vez ou outra saia para uma refeição rápida e tendo o privilégio de um olfato bem apurado, logo encontrava alimento. Mas essa não era minha única habilidade. Podia enxergar também a quilômetros de distância meu prato favorito. O que me valia sempre a companhia de outros da minha espécie, que não foram abençoados com as mesmas habilidades, pois não pertenciam à família real.
Apesar de sentir-me segura, faltava-me alguma coisa ou alguém. Não que eu precisasse, pois já era feliz por demais na vida que eu tinha. E mesmo não vivendo em bandos era comum que pensássemos em perpetuar nossa espécie e para isso buscávamos parceiro para reprodução. Parceiro este que seria para a vida toda. E naquele ano, na primavera eu encontrei o amor. Meu parceiro. Aquele que seria daquele dia em diante meu maior companheiro.
Pois não é que eu encontrei o mais lindo, gentil e corajoso planador dos ares?!
Não temos inimigos naturais. As outras espécies mal se aproximam de nós. Não disputam conosco nosso alimento e nem somos prato predileto de ninguém. Não somos ameaça para humanos, muito pelo contrário. Nem tão pouco dependemos da ação humana para sobreviver. Há segurança, sem predadores, comida com fartura e da melhor qualidade e sem concorrência. Nos alimentamos do lixo produzido ou deixado pelo homem.
Mas os humanos nos desdenham e nos rotulam como imundos e malcheirosos. Somos vistos como a escória do mundo animal.
Eles desconhecem o fato de que nossas asas são mais limpas e desinfetadas que as mãos deles! O próprio sol realiza esse trabalho todos os dias. E olhe que minha espécie pode viver até 40 anos.
Será que os humanos sabem que o que lhes causa repulsa é justamente o que os livra de um grande problema ambiental e sanitário?
Será que desconhecem que nosso corpo é preparado para realizar a digestão de qualquer alimento, por mais putrefeito que esteja, sem que nada nos cause doenças?
Será que sabem da nossa grande habilidade em economizar energia em nossos voos? Sim, voamos tão alto que muitos nem podem imaginar e sabemos, como nenhuma outra ave, planar nas correntes de ar sem qualquer esforço.
Na verdade, nós prestamos com primazia um trabalho para a humanidade. Somos responsáveis pela eliminação de 95% daquilo que o homem não sabe o que fazer.
Conseguimos evitar que grandes epidemias aconteçam causadas pela ação de decomposição de restos de animais, carcaças largadas em qualquer lugar… E a nós, quanto mais apodrecida estiver, mais saborosa nos parece.
Sou a Cathar Blue, e vivo com meu parceiro Uru Blue nos picos nevados do Chile.
Sim, eu sou da família dos corvos, mais popularmente conhecidos como Urubus. Somos parentes dos Condores e pertencemos todos à grande família Cathartidae. Somos muitos ao redor do mundo. Uru Blue e eu somos da espécie Urubu-rei e como tal vivemos. Seguros, sem necessidade de caçar, sempre temos alimento, seja em qualquer estação ou lugar. Nenhuma outra espécie nos persegue e somos da paz, não incomodamos ninguém. Ninguém nos coloca arreios nem nos prende em gaiolas ou chiqueiros. A verdade mesmo é que ninguém nos quer por perto. Sorte nossa, pois temos o mundo como morada e o céu como estrada. Temos uns aos outros e reconhecemos nossa utilidade. E assim vivemos, felizes e livres nesse mundão de meu Deus!
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* Luzia Maria de Souza é integrante da Turma Manoel de Barros, da Vivência Novos Autores, da Árvore das Letras, um encontro online semanal de leitura e produção literária. Você também pode participar. Saiba mais AQUI.
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