O SEGREDO DE GABI

Por Leandro Bertoldo Silva

Gabi guardava um segredo. Bem, segredo é uma maneira de dizer, porque ela o contava para todas as pessoas, pelo menos para quem quisesse ouvir; ouvir e ler, pois a menina o escrevia em formas multifacetadas de poesia. Toda ela era um brincar de versos. Havia palavras em seus cabelos, rimas em seus gestos cheios de sossegos, métricas em seu olhar. Ninguém entendia a simplicidade em que vivia , mas Gabi naquele seu versejar de oásis repetia, repetia: “sensação de veludo. Lembrem-se! Sensação de veludo”.

O tempo passava descompassado e ninguém sabia o significado daquelas palavras. Gabi sorria, Gabi corria, Gabi dançava. Não sei se os segredos têm os seus métodos, como diziam os incrédulos, mas não havia pessoa a duvidar da felicidade daquela miúda. Como podia? Na cidade dos Afazeres não cabia sorrisos. Trabalhava-se de manhã à noite. Isolavam-se nas fábricas de tecnologia, inventavam-se inteligências, criavam-se máquinas, tudo para resolver o grande problema: onde estaria a felicidade que não vinha? Na falta de resposta e na tentativa de encontrá-la, lá se iam mais máquinas cada vez mais potentes e portáteis para facilitar o manejo e as pessoas as adquiriam ao preço do seu próprio tempo.

Enquanto isso, Gabi sorria, Gabi corria, Gabi dançava. “Sensação de veludo. Lembrem-se! Sensação de veludo” — repetia.

O caso de Gabi foi parar na cúpula de Afazeres. A menina mantinha junto de si um caderno. Há tempos não se via um daqueles. Capa de couro com fitas trançadas como fecho. Uma coisa daquela tão antiga só poderia guardar o tão almejado segredo. Mas como algo tão importante estaria em posse de tão pouca criatura? Chegava a ser infâmia. Cientistas, engenheiros, designers, programadores, até influenciadores debruçavam-se dia e noite na tarefa de buscar a felicidade, mas era em vão. Interrogada pelas autoridades, Gabi apenas sorria sem entender muito a razão de tanto alvoroço e seguia a escrever sua dança e seus movimentos. Todo o seu tempo era destinado às palavras que brotavam de si e também àquelas percebidas em meio a outros, como o cair da folha e o nascer do fruto, a gota de chuva a navegar na janela em sonho de barco, o voo da ave a colocá-la em estado de garça e tantas outras coisas que ela colhia e outras mais que só ela sabia.

Um dia o caderno foi confiscado. Seria analisado pelas autoridades competentes de Afazeres, assim disseram. Contudo, algo curioso aconteceu: o tempo passava e passou também para Gabi, que já não era mais uma criança. O caderno nunca fora aberto. Gabi havia sido proibida de escrever. O motivo ninguém dizia, só não entendiam a felicidade que ainda fazia morada dentro dela ao vê-la pescar luzes e a colorir a vida de pássaros em meio à natureza da alma ecoada pelo mundo.

Sem suportarem mais a curiosidade e ao desistirem de inúteis tentativas de descobrirem por si o segredo de Gabi, um decreto foi instaurado: que fosse aberto o caderno! Alvoroço geral, mídias e redes sociais não noticiavam outra coisa. E assim foi feito. Em posse de tanta euforia, lá se depararam com as coisas simples da vida. Com letra de poeta, lia-se:

“As coisas simples parecem bobas.

Mas deveriam ser percebidas de modo genuíno.

O trigo em embalagem de papel

pode parecer estranho,

mas gosto da textura do papel na mão,

do aconchego da receita naquele contato.

.

Ah! E o café coado fresquinho?

O cheiro da terra que a chuva desperta.

O som de um bando de aves voando ao entardecer.

A água do chuveiro caindo na cabeça,

de olhos fechados e corpo submerso.

.

Andar de meias em dias frios.

Tomar água com muita sede.

Conseguir pegar o pão

que acabara de sair do forno na padaria.

Passar a sola dos pés em um tapete fofinho.

Respirar fundo e soltar o ar.

.

Cada detalhe desses traduzem o que chamo de

sensação de veludo.

É quando viver preenche tanto os tatos da vida

que na maciez dos sentidos

contemplo o belo do existir.”

.

Assinado: Gabriela Lopes.

E não houve mais segredos.

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Essa história foi escrita inspirada na poesia “As coisas simples da vida”, que está no livro Versos, dores e cores, da poetisa Gabriela Lopes. Nasceu de uma proposta da Vivência Novos Autores de escrever prosa a partir da poesia. Como escritor, gosto de ler poesia para escrever prosa, pois muitas são as histórias contidas nos versos. E o melhor de tudo é que as histórias sempre são outras a partir de cada olhar… Gratidão à Gabriela por permitir essa troca. E você, gosta de poesia? Curta, comente. Essa ação é muito valiosa para mim.

Forte abraço!

Até a próxima.


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