
Por Valéria Cristina Gurgel
“Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado”
(Rubem Alves).
Tão logo raiava o dia, em fila, desciam o morro cantando. Passos firmes equilibrando suas bacias, sem titubearem. Elas se reuniam à beira do Rio das Velhas. Quanta ironia! Elas eram jovens e belas donzelas, em sua maioria. Elas amavam, elas sorriam, elas viviam. Os pés descalços ziguezagueavam entre as pedras e a correnteza cristalina.
Não deviam esmorecer o labor, traziam no rosto o fervor, e na pele essa marca da raça, da estranha alegoria que trazia fé para a vida. Não sentiam o frio e rodopiavam leve e soltas, esnobando a alvura dos lençóis bailando às seis da matina.
Suas jovens mães e avós, precocemente viúvas, permaneciam em casa cuidando dos filhos menores, dos netos, sempre numa escala acirrada de zero a dez. Os mineiros morriam jovens, enterravam a dura ilusão trabalhando na Mina chamada Morro Velho, fatídica dicotomia. Os órfãos amineiravam sonhos de pedra de minério, que viravam pó, sem brilho de valor. Cresciam soltos brincando de alegria pueril e disputando um lugar ao sol.
Mas as mulheres não se queixavam da escassez de futuro. Ali havia excesso de presente. Era preciso ter força, ter garra, ter gana sempre, pois, a labuta diária nas águas daquele rio caudaloso lavava o suor e até os pensamentos insalubres. Esfregavam as roupas e os problemas com sabão de cinza, o que estivesse mais encardido quaravam e batiam na pedra e, aos poucos, como uma magia, as manchas iam se desfazendo em cada peça e também no coração.
O rio seguia seu curso, desviando obstáculos, sem alterar a rotina das lavadeiras. Lave Maria, lave Maria era o som, era o dom e o canto das corredeiras. Elas lavavam as roupas e as dores da alma e enxaguavam o destino atentas aos redemoinhos.
Elas contavam histórias, as suas, as delas, as nossas. Elas cantavam cantigas de roda, religiosas, folclóricas, inventadas, inspiradas nas dores, nos amores, nas glórias. Lave Maria, lave Maria, lave Maria.
Lavar roupa todo dia, não era uma agonia para essas Marias: andorinhavam a paz do azul celeste sobrevoada no leito do rio.
São todas Marias protagonistas da vida ganhando o sustento de suas famílias.
Lave Maria, Lave Maria, Lave Maria…
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Lave Marias é uma das histórias do livro “Guirlanda das Emoções”, da escritora Valéria Cristina Gurgel. A obra, publicada pela Árvore das Letras, através do selo Alforria Literária e parceria da Editora Rolimã, é fruto da Vivência Novos Autores, uma imersão de sentimentos por meio da leitura e escrita que tem o objetivo de aprimorar a percepção literária e metafórica das histórias que lemos e ouvimos, e ainda aplicar técnicas criativas e afetivas na produção de narrativas e poesias.
Para saber mais sobre a vivência, clique AQUI.
Para adquirir o livro “Guirlanda das Emoções”, entre em contato com a autora no perfil https://www.instagram.com/valeriacristinagurgel/
Forte abraço!
Até a próxima.
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