RECORDAÇÕES – HISTÓRIAS QUE MINHA AVÓ CONTAVA

Por Rosi Amaral

Rosi Amaral é de Belo Horizonte. Trabalha como professora na rede pública. É contadora de histórias e escritora.

Maria, nome pequeno de uma pessoa com grandeza de alma, de coração e de histórias. Vó Maria sempre tinha uma história pra contar. Mas a que eu mais gostava de ouvir era uma da cidadezinha onde ela nasceu: Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Ela contava que, ainda menina, conheceu Antonieta, a moça mais bonita da cidade. Antonieta estava de casamento marcado com João, um fazendeiro muito rico. Aconteceu que, na véspera do casamento, a moça fugiu, deixando para trás o noivo, vários rapazes que alimentavam uma escassa esperança de conquistar seu coração e um bilhete dizendo que iria para a cidade grande em busca do seu sonho: ser uma cantora famosa.

Vó Maria lembrava também de Salete, a irmã mais velha de Antonieta. Era a moça mais séria da cidade. Vivia para o trabalho e para a igreja. Criticava a postura dos jovens da cidade que se entregavam aos prazeres carnais, esquecendo de preservar a moral e os bons costumes. Não gostava de falar da fuga da irmã. As mexeriqueiras da cidade diziam que ela era apaixonada pelo noivo abandonado. Mas esse, depois da partida da amada, resolveu ser padre.

A pobre moça, com o coração partido, passou a dedicar-se ainda mais à igreja e às obras de caridade. Estava sempre disponível a qualquer hora do dia ou da noite para ajudar os necessitados. Só não saía de casa em noites de lua cheia. Ela tinha medo de encontrar Maria Doida, uma jovem andarilha que, desde menina, demonstrou ser perturbada das ideias. Vivia com a cabeça na lua, literalmente. Cantava, fazia versos e até uivava para seu objeto de fascinação.

Aconteceu um dia que Salete teve que sair às pressas para ajudar umas carpideiras no velório do médico da cidade. O doutor que cuidava de todos, esqueceu de cuidar da sua própria saúde. A cidade ficou desolada. Ninguém imaginava que o doutor sofria do coração.

Salete, pega de surpresa com a notícia, esqueceu de olhar a lua e saiu de casa.

Estava passando na porta da igreja quando ouviu um uivo assustador. A pobre moça congelou no lugar que estava. Não conseguiu dar um passo. Sem ação, viu Maria Doida se aproximando, aproximando, até que, quando estava bem perto de Salete, olhou em seus olhos, pegou em suas mãos, sorriu e soltou um uivo bem suave, parecia quase uma canção. Nessa hora, Salete sorriu também, algo que não fazia há muito tempo. Depois saiu de mãos dadas com Maria Doida, uivando pela cidade. A partir desse dia, Salete passou a viver na rua junto com Maria Doida. As duas sempre eram vistas fazendo versos e uivando para a lua.

Minha avó terminava a história assim. E eu sempre perguntava: Mas, e a Antonieta?… E minha avó dizia: Durante muito tempo, nas noites de quermesse, quando o rádio da cidade tocava as músicas das paradas de sucesso, todos ficavam atentos na esperança de ouvir a voz de Antonieta…

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Gostou do texto? Talvez não tenha percebido, mas ele é cheia de “ingredientes textuais” e nasceu de um exercício de criação de escrita afetiva aqui na Árvore das Letras, no curso Vivenciando a Linguagem, Leitura e Escrita, em que Rosi usa das suas memórias para costurar histórias

É assim que acontece: ingredientes estão por todos os lados, basta juntá-los e dar a eles o seu toque literário. Parabéns, Rosi. Seja, também, muito bem-vinda!

Ah! Rosi Amaral é a menininha da foto…

Curta, comente. É uma ação simples que ajuda as histórias chegarem a mais pessoas.

Forte abraço!

Até a próxima.

CONTRA RESIGNAÇÃO A ACÇÃO

Por Tomé Nasapulo

Emílio Tomé Cinco Reis, de pseudónimo Tomé
Nasapulo, de nacionalidade angolana, natural da província do Huambo, professor
do ensino secundário do 2° ciclo do liceu 4019 “24 de junho-Cacuaco”
lecciona a disciplina de Física e é graduado em geologia na opção recursos
energéticos, pela Universidade Agostinho Neto, Faculdade de Ciências Naturais.

Oprimidos
Somos!…

Desesperadas vozes
Ecoamos na escuridão
D’Alvorada almejada
Vislumbra-se o horizonte

Oprimidos
De aflição, cansados
Trémulos e ofegantes

Vai o tempo meio sem conta e a nebulosidade
Aflora esperança sucumbida ante murmúrios
Ao sucumbir da mulher da criança que chora
Da vontade de vencer
Quebrada a opressão

Resignação nunca!

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Aqui está mais uma poesia angolana fruto do encontro dos nossos continentes. Tomé Nasapulo aqui chega onde já se encontra o professor Dr. Antônio Alexandre. É assim que ele o apresenta:

Conheci o professor Emílio Cinco Reis , no liceu 4019, no ano letivo 2021/ 22. Na altura ele declamou um dos seus textos poéticos. Daí fui acompanhando o talento dele.  E para não ficar perdido no mundo da física que é cadeira que ele leciona no liceu falei com a Gabriela Lopes no sentido de o ajudar na publicação dos textos. Sabemos todos que a Gabriela Lopes é aquela janela aberta que mesmo em altas horas não se fecha. Foi assim que para além da janela aberta encontrei um portão aberto que é Leandro Bertoldo Silva.

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Ah, quem é Gabriela Lopes? Vocês também a conhecerão…

Seja bem-vindo, Tomé Nasapulo.

Forte abraço!

Até a próxima.

ENTRE O ANELO E O SUSPIRO

Por Leandro Bertoldo Silva

Aflição de ser água em meio à terra

e ter a face conturbada e imóvel.

Hilda Hilst

Tenho um gosto especial pelos diários, principalmente aqueles escritos com a mais fina pena da literatura. Como não lembrar Carolina Maria de Jesus e seu “Quarto de despejo, o diário de uma favelada”? O que falar de “Memorial de Aires”, um dos meus livros preferidos de Machado de Assis? Ou mesmo “Drácula”, de Bram Stoker, todo escrito em forma de diários pelos personagens da trama em idas e vindas, questionamentos e respostas ao tecerem um impressionante relato intercalando-se uns aos outros?

Todos esses diários são eternizados nas memórias de quem os leram, alguns ficcionais, outros reais e outros ainda mistos. Vá entender a cabeça de um escritor! Mas há um no pedestal dos apaixonados por essas linhas inicialmente pessoais e despretensiosas a chamar-me curiosa atenção: o diário de Anne Frank. Isso mesmo! É o nome do que se tornou um dos livros mais emocionantes do mundo inteiro. A história da pequena Anne, assassinada pelos nazistas depois de passar anos escondida com sua família e outras pessoas no sótão de uma casa em Amsterdã, onde funcionava a fábrica de seu pai.

Mas não irei falar aqui sobre essa triste história, que não deve ser esquecida; daí também a importância dos diários. Antes falarei de uma peculiaridade simples, mas genial: Anne não escrevia ao léu, mas para Kitty, uma amiga imaginária. O que isso tem de extraordinário? Tudo! Ao direcionar a escrita a alguém, ela se torna, além de íntima, confidencial. Ainda mais se esse “alguém” for bem construído, com uma vida pregressa, profissão, família, amizades, escolhas… Isso o torna uma pessoa em potencial de não apenas escutar a sua fala, mas dialogar com as suas alegrias e dores. Como? Nas suas próprias digressões. É possível supor qual seria a resposta, mesmo que não concorde com ela.

Por isso, não me custa nem um pouco confessar: furtei a ideia de Anne. Mas não me julgueis mal. Jorge — sim, o “meu Ktty” se chama Jorge — é alguém que conviveu e convive comigo há muitos anos. Bem antes de adentrar-me no universo dos diários já detinha com ele longas conversas. Almoçava com ele, ria com ele, chorava e até brigava. Chegamos a ficar alguns anos sem nos falarmos, embora ele sempre me aparecia em sonhos, mesmo em silêncio, a abrir-me as janelas da minha alma. Engana-se quem pensa que era eu uma criança. Estou a referir de quando já era bem crescidinho. E como foi ele a escolher-me e não eu a ele dei-lhe um presente: um romance — Janelas da Alma — no qual Jorge, com toda a sua destreza, fundiu-me ao seu modo de pensar e de sentir. Tornou-se o personagem principal.

Caso se interesse em ler ficaremos felizes. Por hora, gostaria de apresentar-lhe o nosso primeiro encontro que passou a ser, também, após o livro ser publicado, o início do nosso diário. O chamo de “Entre o anelo e o Suspiro”.

Há momentos de mais puro esquecimento, esses momentos entre os quais nossa alma se liberta em princípio de estado. Como é doce o não ter que ser… Era o pensamento de Jorge ao me olhar pela primeira vez. Queria não ter que ser sempre, entregar-se a ele mesmo como as flores se entregam ao orvalho da manhã sem trocas e sem medos.

Sempre teve [ou tive?] a visão desse encontro: ora era a flor, ora o orvalho, como ora era o escritor, ora o personagem, sem preferências ou escolhas a vir destruir os versos existentes “entre o anelo e o suspiro”, como dizia aquela poesia guardada em um naco de memória.

Já era noite e toda noite era assim: preparávamo-nos, eu e Jorge, para esquecer, nunca lembrar. No esquecimento, não há sonhos – essa arrogância do pensamento. Isso já era eu a achar, em comunhão com meu personagem, a essa altura sem saber quem era ele e quem era eu.

Não importa. Calávamos um para o outro no momento exato do esquecimento, fragrância milimétrica de tempo entre o estar acordado e o começar a dormir. Pronto. Já foi. O barulho recomeça e o sonho invade os nossos pensamentos.

Boa noite, Jorge.

Amanhã

volto

a

escrever-te.

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Bem, amigos e amigas que me leem aqui neste sítio (sim, adotei este nome), foi assim o meu reinício com Jorge. Digo reinício porque passei 15 anos a escrever o tal romance que lhe dei de presente. E agora nos falamos todos os dias, eu daqui e ele de lá. desse universo extraordinário da literatura. E você? Também escreve ou já escreveu diários? Diga aí nos comentários sobre sua experiência com eles. Vou gostar muito de saber.

Curta, comente, compartilhe e, como sempre, obrigado por estar aqui.

Forte abraço!

Até a próxima.

O VENTO DA LIBERDADE

Por Antônio Alexandre

Doutor em educação, presidente do instituto superior politécnico Nelson Mandela.
Professor de língua portuguesa, literatura, inglês e sintaxe do português. Investigador, membro correspondente da ALTO, colunista do jornal Roll. Autor de vários artigos científicos, professor convidado da Fics, professor convidado da UNEC.

“Deixe-me lhe contar o seguinte:

Angola é um país que se livrou do julgo colonialismo em 1975, tornando-se independente. Depois mergulhou em guerrilha durante longos anos. O calar das armas teve lugar em Abril de 2002. Como pode ver é um país virgem, cujo povo luta pela escolarização, justiça e liberdade.
Na literatura busco despertar a consciência”.

(Antônio Alexandre)

O vento da liberdade

 Cheira, todos os dias, à chuva.

Chuva de justiça, chuva de paz e de amor.

Senti o cheiro quando à praça caminhava.

Vejo todos correndo à praça é o fim do opressor.

Chegou à praça o cheiro da liberdade

E no rosto do povo a felicidade.

Vejo o campo a crescer e a renascer a esperança.

Vejo o fim da escuridão dando lugar à justiça.

                               

Cá na praça o povo alegre agita-se pela independência.

E todos na busca da irmandade, na tolerância e na paciência.

Caminham juntos e abraçados pela mesma distancia.

Sinto o vento e o cheiro da mudança.

Uma mudança que veio para ficar.

Como a dança do carnaval e como a onda do mar.

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Permitam-me um compartilhamento. Nessas duas semanas que se passaram vivenciei um belo encontro (mais um) que me proporcionou um abraço cultural com nossos irmãos de África. Antônio Alexandre, confrade na Academia de Letras de Teófilo Otoni, manteve comigo breves, mas auspiciosas conversas por e-mails; eu aqui, no Vale do Jequitinhonha e ele lá, em Angola. Dentre abraços verbais e saudações literárias, eis que fizemos nascer uma parceria além-fronteiras aqui mesmo nesse sítio, como ele chama, e é sem dúvidas a melhor maneira de denominar algo a partir da nossa própria língua. Estaremos, a partir de “O vento da liberdade”, a trocar histórias: contos, crônicas, poesias, tanto minhas quanto as dele e também de nossos alunos e alunas, a serem publicadas aqui neste espaço. Espero que gostem, assim como nós, dessa novidade e continuem a compartilhar, comentar e fazer ir longe nossas letras irmãs.

Seja bem-vindo, Antônio Alexandre.

Forte abraço!

Até a próxima.