Por Leandro Bertoldo Silva
Está certo. A gente tem a pré-disposição de acreditar nos antigos ditados populares como mananciais de sabedoria que os mais velhos detêm com certo ar de superioridade. Isso, naturalmente, não seria um engano se de tempos em tempos as ocorrências da vida não desmascarassem certas verdades e se associassem ao Sobrenatural de Almeida que de sobrenatural não tem nada e usa o famoso personagem de Nelson Rodrigues apenas como meio de explicar o inusitado. Vejamos o acontecimento de uma manhã de sábado, dia agradável, em que um miúdo, sozinho em casa, ouve discretamente um chamado no portão de sua casa, tão discreto que as palmas tiveram suas sequências duas vezes repetidas: tap, tap, tap, tap, tap… tap, tap, tap, tap, tap…
O senso comum seria perguntar quem era. Mas o miúdo, indiferente às precauções, foi logo abrindo e desferindo em sorriso um “pois não, o que desejam” de maneira tão natural e agradável que os dois homens ali à sua frente apenas arquearam as sobrancelhas entreolhando-se.
— Seu pai está em casa? – perguntou um deles enquanto o outro já escaneava com seus olhos treinados o interior da varanda.
— Não, senhor.
— E sua mãe?
— Também não. Saíram há pouco. Meus irmãos também não estão, de modo que estou apenas com o Policial em casa.
— Policial?!
— É, o meu coelho.
— Ah, sim… Que susto, quer dizer, que nome auspicioso…
— Os senhores conhecem os meus pais?
— Bem… Sim, conhecemos muito. Por isso viemos aqui para uma visitinha…
— E por que não mandaram uma mensagem dizendo que estavam a caminho? Certamente eles esperariam.
— É que pensamos em fazer uma surpresinha.
— Ah, claro. Vocês querem entrar e esperá-los? Aposto que eles irão gostar da surpresa.
— Não resta dúvida…
Com essa conversa os dois homens foram conduzidos ao interior da casa, onde o miúdo providenciou duas cadeiras convidando-os a se sentarem. Furtar-me-ei — para usar uma palavra bem a propósito — em descrever o ambiente, tanto porque isso nada acrescentaria ao relato. Basta saber que os convidados não sabiam se admiravam mais o que viam ou se a extrema hospitalidade daquela criança ao oferecer café e biscoitos para total desconserto de suas intenções.
— Caso o café esteja frio, faço outro rapidinho.
— Não, não se incomode – disse um deles.
— Não iremos demorar – disse o outro.
— Não é incômodo algum. Afinal, precisamos tratar muito bem os hóspedes.
— Hóspedes?! – Perguntaram os dois ao mesmo tempo.
— Sim, vocês não vieram visitar os meus pais? Pena que eles não estão.
— É, pena…
Um dos homens já achando aquela situação meio diferente, embora “estranha” seria a palavra mais adequada, perguntou ao miúdo depois de conversarem tempos a fio sobre todos os assuntos possíveis, incluindo comportamento humano e coisas cheias de sabedoria e sem compreender de onde vinha tudo aquilo, se ele não tinha medo de, bem… Ladrões.
— Bem, seu… seu… Ih, olha só: nem nos apresentamos! Eu me chamo Ricardo. Ric para os íntimos. Qual a graça dos senhores?
Os homens se olharam cada vez mais espantados.
— Eu me chamo Juvenal.
— E eu Dorival.
— Parece dupla sertaneja! Então, até era para eu ter muito medo de ladrões a considerar a minha avó.
— Sua avó roubava pessoas?
— Que malucos! — disse Ric achando graça — Não, não! Minha avó foi roubada dezessete vezes. Coitada, precisavam ver como ela ficava arrasada.
— Coitada mesmo! Não é para menos… Que malandros! — disse no impulso Juvenal se assustando com o próprio comentário e recebendo um olhar meio de estranhamento, meio de cumplicidade de Dorival.
— Mas o fato é que eu não tenho medo, sabem? Entendo que isso é um problema social e da má distribuição de emprego e renda desse país.
— Quantos Anos você tem, menino?
— Doze.
A essa altura, os dois homens já não observavam a casa da mesma forma de quando entraram e se mostravam impressionados com aquela conversa, a pouca idade de Ricardo e a naturalidade com que se expressava.
— Você acha isso mesmo? — Indagou Juvenal.
— Acho sim, você não? O que você acha Dorival?
— Eu, bem… Há controvérsias!
Juvenal olhou curioso para Dorival.
— Sim, Juvenal! O menino tem toda razão, mas tem muito gatuno por aí com instrução, boa pinta, roupas de marca, sapatos novos e tênis da moda, com toda condição de trabalho, fortes e saudáveis, que ao invés de recorrer à honestidade prefere roubar as pessoas. É um absurdo!
Silêncio.
Juvenal e Dorival olharam um para o outro, de cima a baixo, e repararam como estavam bem vestidos e calçados, barbeados e penteados. Observaram seus físicos avantajados. Olharam para Ricardo ao segurar a garrafa de café com uma das mãos enquanto com a outra oferecia mais biscoitos com um sorrisinho no canto da boca.
Que diabos significava aquele sorriso? O fato é que não saberemos. Juvenal e Dorival apressaram-se a sair, mesmo com a insistência de Ricardo para esperarem os seus pais e ficarem para o almoço. Foram embora. Mas não sem antes recomendarem ao miúdo para nunca mais abrir o portão para ninguém quando estivesse sozinho. Há muitos gatunos por aí.
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Bem, a Crônica de Domingo de hoje é algo acontecido comigo lá se vai algum tempo, que a literatura sempre dá um jeito de transformar em arte ou mesmo em livramento… Mais uma vez agradeço a sua leitura nesse nosso encontro por aqui. Mas antes de ir, curta, comente, quem sabe você não se lembre de algum momento que sentiu estar sendo protegido ou protegida? Diga aí!
Forte abraço!
Até a próxima.